quinta-feira, 1 de maio de 2008

Foco - Capítulo 3

Sua vida até esse momento havia lhe trazido fatos sobre ele mesmo de certa maneira bastante interessantes, isso é fato. Mas talvez ter duas mortes como principais lembranças depois de pouco mais de uma década e meia de existência não fosse exatamente algo a ser muito celebrado. Ainda mais quando uma delas significou a despedida de uma das pessoas mais importantes na formação de quem ele era agora. De certa forma, no entanto, servia de consolo saber que muito ainda o esperava ao longo de seu caminho.


Uma briga, dois nomes, e um meio sorriso


É fato que omiti um evento muito importante para o desenvolvimento de nossa narrativa. Mais precisamente aquele que falava sobre um certo ganho. Pois bem. Creio que nos entretemos demais nos momentos finais entre ele e seu avô, mas vamos então voltar ao ponto que buscávamos. O ganho foi, de certa maneira, uma surpresa. Poucos dias depois de sua visita ao cemitério, houve a descoberta de um objeto estranhamente familiar.


Uma breve descrição:


Quando não estava entretido com o mundo à sua volta, buscava refúgio dentro do mundo que ele mesmo havia criado. Não é possível dizer que, nesse aspecto particular, fosse muito diferente que qualquer outro adolescente comum. Para ele, seu quarto não era apenas o lugar onde se passava algumas horas em sono pesado, mas significava também o lugar onde se encontrava tudo aquilo que necessitava para viver em paz consigo mesmo. O cômodo retangular possuía grandes janelas em toda a extensão de um dos lados maiores, exatamente à direita de quem entrava, como se o próprio aposento houvesse adquirido a personalidade observadora de seu residente. A grande estante repleta de livros e revistas empilhados uns sobre os outros, embutida no pequeno espaço logo ao lado da porta criava uma espécia de túnel, que separava o mundo exterior dos mistérios guardados dentro de suas paredes. O imenso armário que servia de plano de fundo a quem olhasse a partir do lado de fora escondia gavetas e mais gavetas, todas repletas de pequenas lembranças, desde pequenos objetos até desenhos que traziam a lembrança de momentos únicos, repletos de sentimentos e imagens. Logo seriam instaladas mais gavetas, e o motivo é bem simples: em cima da cama de solteiro que ficava exatamente entre a porta e o armário, e diretamente voltada para a janela, havia uma câmera fotográfica, calmamente aninhada na colcha feita de retalhos coloridos em forma de losangos, como que esperando por alguém em especial. E esse alguém em especial logo a reconheceu, primeiro como uma estranha naquele ambiente tão bem conhecido, depois como uma velha amiga de lembranças antigas.


-Hã... o que é isso?, dirigindo-se à sua mãe, que naquele momento estava em sua cama encarando um antigo porta-retratos, ainda com seu rosto mostrando as marcas de dias de lamento por seu pai falecido.

-É a câmera do seu avô. No testamento dele estava que você devia ficar com ela, então trouxe hoje de manhã quando estava arrumando algumas coisas na casa dele. Ela ficava lá em cima da estante da sala, perto daquele toca-discos antigo, não lembra? Falando nisso, trouxe ele também. Você sempre gostou dessas coisas antigas....


É claro, ele se lembrava. Não tinha como esquecer. Aquela mesma câmera que agora se escondia em suas mãos já fora muitas vezes o assunto principal das conversas dos dois. Segundo seu avô, aquela antiga peça de maquinaria, que por certo já deveria estar em um museu, havia registrado praticamente todos os momentos importantes da vida daquela família de três pessoas. E agora aquele pequeno pedaço de plástico e metal era todo seu, como um antigo membro da família que acabava de conhecer o mais novo rebento.

* * *


Sua reação foi prática. De certa maneira, ele agora sabia que seu avô havia encontrado uma maneira de se manter presente mesmo após ter partido. E após ter entendido isso, foi logo em busca de mais algumas memórias.


Uma casa, e sua identidade


A casa de seu avô conseguia refletir exatamente o perfil de seu antigo ocupante. Em cada detalhe do pequeno quarto-e-sala que o ancião ocupara era possível encontrar algo que parecia gritar seu nome. Mesmo apesar de ter vivido ali apenas após a morte de sua esposa, a atmosfera que a casa conservava parecia secular. Desde a entrada, onde se via na sala os móveis feitos na madeira seguindo quase um estilo rococó, com cada parte da peça trabalhada com o único propósito de exibir uma exuberância única. O carpete com manchas de vinho, cigarro e café revelavam um homem entregue à vícios mundanos. As cortinas drapeadas que encobriam completamente as janelas fechadas durante anos criaram um certo ar estagnado, com seu silêncio quebrado apenas pelo barulho grave e estridente dos Long Plays de Jazz e Bossa Nova ouvidos através de duas caixas de som praticamente estouradas. Estes, e as pilhas de livros antigos espalhadas por cada canto do cômodo eram praticamente toda a companhia da qual compartilhava o velho, com exceção das frequentes visitas do neto. Fora ali que ouvira de seu avô todas as histórias a respeito de sua própria história, e de certa maneira o lugar representava o início de um novo capítulo. Além deste, apenas outro cômodo na casa vale um comentário. Isso porque é lá que nosso personagem conhece mais sobre seu avô, e sobre si mesmo. O quarto de empregada, por não ser utilizado como prega seu nome, fora transformado em uma verdadeira arca, onde tudo ali contido possuía imenso valor para seu dono. Ao neto, no entanto, fora negado qualquer acesso àquele baú do tesouro, até aquele momento. Não que houvesse algo a esconder, mas o homem que utilizava gravatas roxas com pequenos desenhos de animais tinha lá suas manias. Agora, todos os segredos ali guardados estavam a um passo da revelação.

O toque frio da chave, e o som metálico que esta produzia quando encontrava a borda do chaveiro durante as rápidas rotações executadas ao redor de seu indicador apenas davam ao momento o leve toque de suspense que o tornavam memoravelmente especial. A grande chave de latão dourado deslizava em direção à fechadura, enquanto em sua mente se dispersava tentando imaginar o que existiria por trás daquela porta que parecia levar a uma dimensão completamente diferente. Sua respiração travou, da mesma maneira que o fez a antiga chave na fechadura gasta ao tentar abri-la, mas um leve esforço possibilitou que a chave finalmente raspasse o metal ao girar duas vezes sobre si mesma, liberando a porta que abriu levemente como se estivesse tímida ao mostrar o conteúdo da sala a alguém estranho.


E sim, era realmente algo de outro mundo. Pelo menos para ele. O quarto era pouco mais largo que um corredor, e cada centímetro de suas paredes estava coberto com centenas de imagens, que iam do rodapé até o teto. Todas aquelas figuras, muitas vezes sobrepostas umas às outras, levavam quem quer que estivesse dentro daquela redoma figurativa à uma viagem através de memórias de dezenas de pessoas diferentes e absolutamente desconhecidas, mas que de alguma forma faziam total sentido ao lado umas das outras. Preto e branco se misturavam com cores vibrantes e fotografias em cromo em tons de sépia, criando uma fusão de matizes somente comparável com um arco-íris caleidoscopicamente embaraçado. Grandes arquivos espalhados pela sala de modo que não tocassem nas paredes guardavam dezenas de outras imagens, assim como negativos, testes de contato, filtros e lentes. Em uma das paredes menores se escondia por baixo de caixas e de um ampliador uma pia com pinças e bacias de produtos químicos, que por sua vez davam ao ambiente um odor levemente ocre. Para chegar de um lugar ao outro, era ainda necessário escalar alguns montes de revistas, livros e LP's antigos. A capa de um disco de Ella Fitzgerald se encontrava abandonada e desfeita de seu conteúdo a um canto, enquanto no outro Elis Regina e Whitesnake faziam um par estranhamente mais diferente e atual do que esperado para o gosto de alguém que já havia visto e ouvido de tudo. Não se podia negar que o velho gostava de novidades. O único objeto intacto, livre de poeira e absurdamente deslocado em meio aquilo tudo, exatamente por ser a única coisa realmente arrumada em um local definido, era uma pequena burra, um baú de madeira forrado com couro. Dentro dela ele encontrou muito mais do que imagens e sons, pois ali estavam simplesmente todo objeto que trazia consigo o sentimento e a memória de cada momento importante da vida do homem. Fotos de uma esposa falecida, cartas repletas de declarações de amor, documentos de uma vida que já não existia mais. O saque estava completo. Dezenas de discos, lentes, flashes e filmes para a câmera, alguns livros e a burra. Ao voltar pra casa, o que levava consigo era mais do que simples objetos. Eram pequenas partes da vida de uma pessoa, que haviam se revelado na verdade muito mais parte de sua própria do que ele imaginava. Passou dias analisando cada pequena parte de seu saque, cantando junto com cada um dos discos de pessoas que ele sequer havia ouvido falar e experimentando como era o mundo através do visor de sua nova câmera.


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