quinta-feira, 1 de maio de 2008

Foco - Capítulo 2

Uma pessoa incomum. Um evento inesperado. Uma imagem. A primeira de muitas, com certeza.


Não existe jeito certo para lidar com esse tipo de acontecimento. Como explicar para uma criança o complexo jogo de emoções que leva uma pessoa a tirar a própria vida? Simplesmente não se explica. Diz-se “não foi nada, não se preocupe”, e tenta fazer com que ela não fique traumatizada a ponto de precisar de ajuda médica em algum momento. Talvez essa fosse a maneira certa, talvez não. Isso não importa muito. Ele mesmo não se lembrava da reação dos familiares em relação a isso. Na verdade, demorou alguns anos até que realmente se desse ao trabalho de tentar entender o que ocorrera naquela manhã longínqua. E mesmo depois que compreendeu a imensidão da situação, tudo o que fez foi guardar pra si o seu próprio sentimento em relação ao que vira. Só o que queria para si eram aqueles olhos. De certo modo um encontro absolutamente metalingüístico, onde o observador se revela observado por seu próprio objeto de interesse, numa variação cíclica, onde cada brilho existente nas pupilas de cada um reflete infinitamente entre os dois, como que em um jogo de espelhos.


Um jogo particularmente divertido, e um pequeno avanço dos eventos


Chegamos a um ponto importante em nossa pequena viagem por estas memórias. É preciso frisar que, após esse marco inicial, seu confronto com eventos de maior importância foi substancialmente reduzido ao longo de alguns anos. Mas isso não o impediu de desenvolver seu pequeno talento cada vez mais. Quanto mais avançava sua capacidade de entender o que acontecia à sua volta, mais era capaz de perceber as matizes existentes no universo que ligava cada fractal de um momento específico com seus personagens. Cada imagem que guardava em sua mente trazia um arquivo não só de detalhes visuais, mas uma completa configuração de sentimentos, sensoriais, emocionais e racionais que explicavam a existência da situação guardada. O fato é que esses registros se tornaram sua principal atividade ao longo dos anos, preenchendo cada vez mais o espaço vazio deixado por outras partes de sua vida. Não se envolvia em esportes, ia a festas com conhecidos e tampouco se integrava facilmente com outras pessoas. Era de certa forma deslocado, até mesmo por realmente não se importar em fazer esse tipo de coisa. Tinha algo muito mais importante a fazer, e, com certeza, muito mais divertido. O problema é que raramente a vida segue o plano que nós mesmos criamos.


Uma perda, um ganho e a cor de um sentimento


As surpresas simplesmente se acumulam ao longo da vida de uma pessoa. Como poderia ser diferente com ele? Foi necessário apenas o momento exato para que um mundo desabasse, e outro absolutamente novo surgisse no lugar como que por mágica.


O que causou a mudança? A perda.


Mais de uma década depois, o inevitável novamente bate a sua porta. Dessa vez, no entanto, não só não era esperado, como também não era bem-vindo. Não era apenas um ente querido. Era o mais querido de todos. Não possuía irmãos ou primos com quem compartilhasse seus momentos. Seus pais eram, para dizer o mínimo, ausentes. E agora, aquele que estava sempre presente quando necessário, que sempre tinha a resposta de tudo e que compreendia todos os pensamentos nunca mais estaria acessível. A morte de seu avô tirava um pouco da cor do mundo.


Uma despedida, e a cor mais triste do mundo


O dia ensolarado revelava cada minucioso detalhe da situação, e as cores vibrantes presentes no gramado e nas árvores que floresciam contrastavam de maneira absurda com a onda de tecido negro que se aglomerava ao redor da grande caixa de madeira. Há quem diga que dias claros como aquele indicam que a pessoa foi em paz. Ele preferia acreditar nisso, apesar de não enxergar tão perfeitamente as cores pulsantes daquele dia em especial. Para ele, tudo adquirira uma palidez indescritível, como se aquele longínquo lápis branco houvesse ressurgido para agourá-lo. A primeira imagem que guardou consigo foi a visão que teve de longe, onde pôde captar um pouco de tudo que havia ali. Cada nuance de cor, cada sombra desenhada por cada detalhe das árvores e das lápides. Cada ínfima característica da situação foi se desenhando em sua mente, com a única diferença residindo nas pesadas cores que iam em desacordo com a realidade. Tons de verde no rosto de cada pessoa, violetas que permeavam as sombras deixadas por cada ser daquela cena, um marrom escuro que tornava aquela mistura algo detestável, como que algo levemente pútrido. Em sua mente, tal união de cores criara algo único e novo. Mas nem toda novidade é boa, e aquela com certeza não era. Diante de seus olhos todo aquele cenário fundia-se em uma única cor, indescritível, mas ainda assim permeada de profundos sentimentos. E no fundo de sua consciência, ele sabia que aquilo era algo realmente horrível de se ver.


Olhos nos olhos, e uma conversa silenciosa


Como que em um deboche, chegara sua vez de dizer adeus pela última vez. Não havia ansiedade em seus olhos. Nem mesmo o prazer que residia em sua relação antropofagicamente abusada com tudo que digeria através de seus olhos aparecia através das pupilas vidradas. A expectativa era a de que tudo aquilo passasse logo, e se tornasse mais uma no álbum de lembranças. Mas o tempo é hábil em brincar conosco. E para ele, a visita ao caixão aberto do avô pareceu durar uma eternidade.

A figura estirada no forro de cetim marfim pouco mantinha da pessoa que fora um dia. A grande barba manchada que cobria a maior parte do pescoço até as orelhas preponderantes e os pêlos do nariz parecia ter encolhido, como se esta possuísse uma vida própria, que lhe havia abandonado juntamente com a do velho. Os lábios finos dos quais antes emergiam grandes gargalhadas encontravam-se cerrados e escondidos entre os pêlos, sem dar a impressão de que dali sairia uma palavra amável e acolhedora, como tantas vezes fizera. O longo cabelo alvo escorria pelos ombros largos, a despeito da falta que fazia no escalpo ancião. As marcas e manchas cultivadas pelos anos praticamente sumiam entre as rugas da face. Para quem o conhecia, era muito simples reconhecer e assinalar uma infinidade de pequenos detalhes na superfície rugosa, cada qual relacionado a uma certa expressão dentre todas as que eram figurinhas certas e fáceis de surgir no rosto desgastado. O sorriso fácil, que repuxava os cantos da boca e resultava numa ampla gargalhada. O olhar severo e bondoso que consumia as pálpebras e todas as partes ao redor dos pequenos olhos, chegando a mover o grande nariz para uma posição que tornava toda aquela expressão zangada mais um motivo para sorrir do que para se entristecer. As grandes sobrancelhas em forma de lagartas, que adquiriam praticamente qualquer formato que se pudesse imaginar, e até alguns que não se podia.

Tudo ali revelava um pouco do homem que outrora possuíra aquele corpo. O terno de bom corte, condizente com seu bom gosto, e sua exigência pelo melhor que sua simplicidade pudesse oferecer. O grande círculo amarelo em volta de seu anelar mostrava sua dedicação sem limites à esposa que o deixara muitos anos antes, e a mancha negra exatamente abaixo do mesmo revelava a resistência do amor de um homem em tempos de dificuldades. A mancha era resíduo de um tempo em que existiam apenas duas opções: ou se sustentava um filho, ou se apegava ao último resquício de luxo da vida. O anel de hoje era uma réplica, adquirida muitos anos depois, para cobrir a tatuagem que eternizou o laço entre duas pessoas. As mãos entrelaçadas por cima do tórax farto mostravam uma posição recorrente, onde os dedões gorduchos faziam um sinal positivo, como que dizendo “não se preocupem, estou bem!”. O lenço em seu bolso fazia par com uma gravata borboleta roxa com pequenos desenhos de um patinho de borracha. Pomposo, fino e escrachado, ele era na morte como foi em vida. Ele havia partido, mas nada havia mudado. Um longo dia terminava, e era hora de ir para casa.


...



Nenhum comentário: