segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Anis


Naquele momento em especial, o sol já começava a se decidir por ir embora. Aquele instante todo especial, quando ele deixa de simplesmente iluminar para passar a nos colorir com tons incandescentes de vermelhos, laranjas e róseos. Foi neste piscar de olhos, que quando os meus se abriram eu a vi. Estava tão perto, que me questionei como não havia percebido-a antes. Bastaria esticar o braço e seria capaz de tocá-la. Não o fiz, no entanto. Ainda que estivesse a menos de um passo de mim, era fácil perceber que estava a uma distância que eu jamais seria capaz de calcular.

Seu olhar se perdia por entre as ondas luminosas que nos atingiam pelas janelas, e me traziam a dúvida se era o mar que proporcionava tal azul profundo a seus olhos cor de anis, ou o contrário. Eu a observava e, ainda que bastasse que ela desviasse um pouco seu olhar para o lado e me notasse, não me abalava. Meu estado de distração, de hipnose por aquele olhar doce e seguro de si não me permitiam tomar consciência de mais nada.

As sombras que oscilavam pela sua face delineavam uma expressão firme, mas desgastada. Seus cabelos, loiros, longos e presos com um laço amarrado com capricho se mostravam descuidados. A pele, como que curtida por anos a fio de sol e tempos difíceis apresentavam sardas e marcas profundas, frutos de provações - por mim - desconhecidas.

Não tivemos mais que cinco ou dez minutos juntos - por assim dizer. Aportamos, e observei-a afastar-se, enquanto o tempo curto nos fazia seguir em direções opostas, cada um seguindo o seu próprio caminho.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A Mística do Ovo Colorido

Torresmo, Mocotó, Pernil ou qualquer coisa em conserva. Aqueles acostumados a rondar os bons e velhos estabelecimentos alimentícios conhecem de cor e salteado os itens do cardápio – ou, melhor dizendo, do quadro com letrinhas de plástico pendurado sobre a cabeça do balconista. Mas é bom lembrar que, mesmo não sendo o mais consumido, existe um quitute – ou lenda, ou entidade, ou fenômeno da natureza fruto dos seres viventes embaixo da capinha de crochê do botijão de gás – que é, sem dúvida, o mais lembrado: o meu, o seu, o nosso ovo colorido.

Não existe aquele que já não tenha ouvido falar de tão conceituado petisco. Encontrar alguém que já tenha consumido, no entanto, trata-se de uma tarefa árdua: o indivíduo dificilmente se lembrará de ter cometido tal ato de coragem, fato normalmente atribuído à baixa quantidade de sangue presente em seu álcool.

Lembro de quando frequentava uma padaria (com nome de santo, como deve ser) no final da Rua do Catete, na Glória – região que, junto do próprio Catete e da Lapa deve ter a maior concentração de estabelecimentos xexelentos deste lado do universo – em plena madrugada. Ainda que a pluralidade da fauna que ali transitava fosse incrivelmente ampla, nenhum jamais se atrevia a mexer com o todo-poderoso ovo colorido. Rapazolas saídos de suas festas, trabalhadores noturnos – de todos os ramos, diga-se de passagem -, insones, desocupados, nenhum deles sequer tinha coragem de encará-lo através do vidro embaçado do balcão. Em meio ao entra-e-sai de clientes e entregadores, aqueles pequenos seres cor-de-rosa, azuis e amarelos reinavam absolutos.

O grande mistério no qual se envolvia tal petisco era, na verdade, o seu fim: as conservas, obviamente, não precisavam de muita atenção; os torresmos, o mocotó, o pernil, as coxinhas, por piores que parecessem, tinham sempre grande saída; os únicos sobreviventes eram os ovos coloridos, resignadamente assentados em um canto da estufa do balcão. Reza a lenda que a última vez em que um desses ovos deixou a padaria foi quando um senhor - certamente transtornado e decepcionado com a própria vida – requisitou meia dúzia destes ovos e duas cervejas pretas para viagem. O que se soube mais tarde foi que o coitado envolveu-se em um misterioso acidente envolvendo um carrinho de mão, um ventilador de teto, uma tesourinha de unha, duas dúzias de bolinhas de gude, duas cervejas pretas e meia dúzia de ovos sortidamente coloridos. Apenas os ovos teriam saído com vida.

Certa vez questionei Bigode (responsável pelo elegantíssimo estabelecimento) sobre os tais ovos. Após olhar em volta e ter certeza de que ninguém estaria ouvindo, Bigode (registrada e também conhecida como Maria Cleuza das Dores – nem pergunte), revelou-me que desistira de preparar os tais ovos há pelo menos uns cinco anos. “Mas e aqueles ali?”, questionei. “É o que sobrou, oras”. Depois dessa fui embora, me perguntando se a próxima civilização a dominar a Terra não estaria surgindo em meio aos ovos coloridos abandonados no balcão da Dona Bigode.


*Texto originalmente produzido para a publicação "Papel de Pão" - @jpapeldepao