segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Morena Suja



"Dança pra mim".
"Mas...", era a resposta.
"Dança. Pra. Mim."

                Os olhos fundos da morena suja lhe encaravam através do cabelo melado, que lhe grudava dos seios aos lábios e lhe davam um ar feroz. A saia rodada pouco abaixo do joelho fazia par a uma camiseta rota e manchada que sequer se esforçava pra tapar-lhe as vergonhas. E na beira-rio sobre a terra batida, em meio aos sons dos tambores e seres da floresta ela dançava, rodava como uma espiral sem começo ou fim, seus movimentos tomando forma de bichos que jamais conheceu e lhe dando vidas que jamais havia vivido. Seus olhos ora encaravam o fundo da alma daquele que lhe dava ordens, ora enxergavam as entrelinhas das profundezas da escuridão que os cercava. Seus pés e mãos alternavam-se no barro ressecado, abrindo feridas nos nós dos dedos, na sola dos pés e na boca do estômago.

O cheiro era ocre, podre como ranho embolorado, de suor azedo como leite, merda e sangue. Não há defunto no mundo que segure suas entranhas com um rasgo de lado a lado. Ela dançava para a massa engordurada que efervescia de ódio cego à sua frente, assim como para o corpo escarafunchado no mato. E nenhum dos presentes ousava parar o que quer que estivesse fazendo pra prestar atenção no acontecido. A aguardente e os tambores eram a fuga para as pobres almas que viviam naquele lugar abandonado por algum deus qualquer, onde ouro era trocado por bananas e putas suadas, e onde era o fio da faca que separava o certo do errado.

A única luz vinha de dois lampiões presos no teto de palha do casebre, um amontoado de madeiras onde um velho mineiro que já não tinha mais forças para escavar servia pinga, farinha, carne de sol e piranhas aos passantes. Praticamente um teto sem paredes que servia de parada pros que navegavam em direção às minas. Os fios de luz mal chegavam à beira da mata, não que essa fosse a intenção. Aqueles homens não temiam a um ser superior, mas supertições e lendas eram as religiões de quem ainda buscava sobreviver na floresta.

Jorge a observava. Gordo, fétido, pútrido, o suor escorria pela sua face e lambuzava seu corpo repulsivo, misturando-se ao sangue do morto que prendeu-se à sua carne. Banhado de vermelho da testa às mãos espalmadas para cima como em uma prece, tomava a figura de uma criatura horrível, com suas narinas arregaladas e seus olhos saltados, em transe, hipnotizado pela figura que se remexia à sua frente. Matara um homem não fazia cinco minutos, e parecia não se importar. Nenhum dos presentes se importava. A morte era direito reservado aos mais fracos e menos habilidosos. Os que persistiam se perguntavam diariamente qual teria sido o pecado pelo martírio de ter de viver aquela mesma vida todo santo dia.

Isabel do Rio Negro, batizada com o nome da santa da sua terra, negra cafuza da floresta, mal tinha caído sangue de seu ventre e já se oferecia em troca de um prato de comida. Alívio e medo tomaram conta de si quando Jorge, enfiado em sua carne, lhe disse que a partir daquele momento pertencia a ele, pois havia literalmente comprado-a, e que se qualquer outro homem relasse em sua pele de negro turvo, haveria de se abrir rio de sangue no chão, dela e do audaz.

Mas entre aviso e medo, cachaça não tem ouvidos – e muito menos memória. O erro do morto foi querer aproximar-se de quem não devia. Bêbado desde muito antes do sol se despedir do dia, foi buscar um cheiro no pescoço de Isabel e em seus braços uma companhia, apesar das negativas da morena e do aviso dado a todos por Jorge. Semeou desobediência, colheu fio fino de prata em seu ventre. Jorge chegava no momento exato de ver o defunto caçando espaços por entre os braços e madeixas de Isabel. Puxara a lâmina que carregava na cintura na mesma hora, e sequer se preocupava em perguntar o que se passava. Aviso é aviso, e de cabeça limpa ou turva pela bebida, havia de ter consciência do que podia e não podia fazer. Deixava passar, e era a conta de haverem urubus rondando o seu pedaço de carniça num bater de ondas. O morto lhe encarou com medo nos olhos embaçados, mas já estava no chão antes de dizer palavra. Jorge era tão grande quanto uma porca prenha, mas suas mãos faziam facas lamberem o ar como chicotes.

Do balcão puxava uma garrafa de pinga dourada feito gasolina sem dizer palavra, e se jogava no banco de madeira mal talhado depois de chutar o morto para o mato longe da luz.

- Que fique de aviso pra vocês tudo, carne minha ninguém mete mão ou olha estranho, pois é isso aí que acontece pra cabra que não ouve bem.

                Jorge falava em meio ao som das batidas, pois ninguém ousava parar ou fazer silêncio. Todos o respeitavam, mas dar atenção significaria mostrar medo, algo que nenhum daqueles homens calejados pretendiam fazer.

                Bufando álcool e exalando ódio, Jorge se levantava e puxava Isabel para si. Pois o aviso valia para ela também, e ele havia de cumprir sua promessa. Não correu uma lágrima pelos duros olhos do enorme mineiro ao passar a lâmina pelo pescoço de sua mulher, como que atiçando o fio e alimentando-o com a vida da mulata cafuza. Jorge jogava a faca para a areia, como dando à terra uma oferenda de aço e horror. Passava um dos braços pelas costas da morena, e com a mão calejada do outro segurava a nuca pelos cabelos negros em profusão. Afogava seu rosto em meio ao sangue suado do cangote fatiado da morena suja e morta, levava-a em uma dança hedionda, e em meio ao som dos tambores e dos olhos da mata se ouviam suspiros gritando como em prece: "morena suja".