sexta-feira, 2 de maio de 2008

Violeta

Ele simplesmente não poderia deixar de olhar. Além disso, as divisórias feitas em vidro foram no mínimo essenciais ao permitir que seu olhar vagueasse pelo amplo salão até se deter naquela imagem particular. Há de se convir, também, que a sala onde ele mesmo se encontrava repudiava qualquer sentimento positivo, incitando divagações que levassem seus ocupantes para longe do recinto, mesmo que apenas em pensamento. Contrariando o padrão, a sala, talvez por estar exatamente na divisão entre a antiga e a nova ala do prédio, ainda mantinha três de suas quatros paredes em seus estados originais, com a aparência de estarem sem uma reforma há pelo menos uns quinze anos. Somado isso ao barulho incessante da rotação de um grande ventilador de parede, uma TV que transmitia mais ruído do que qualquer outra programação, uma secretária que se escondia por trás do móvel mofado falando no telefone em alto e bom som com sua voz esganiçada “só pra compensar o salário de merda”, uma planta morta e cadeiras extremamente desconfortáveis, era facilmente compreensível o apelido de “portal do inferno” que recebera dos funcionários mais antigos. Sendo assim, aquela única parede de vidro representava quase que um oásis para aqueles que se sentiam como prisioneiros naquela sala de espera.



Não era, então, surpresa alguma que ele logo notasse a figura daquela mulher na sala ao fundo do salão, bem em frente a ele. A distância entre os dois era apenas suficiente para impedir a constatação de pequenos detalhes, mas era também próximo o bastante de modo a permitir um extraordinário exercício de imaginação. Toda vez que precisava ir até ali, sentava-se sempre na cadeira mais próxima da janela de vidro, mais pelo fato de querer distância da planta meio morta no outro extremo da parede, que parecia sugar-lhe toda a esperança da alma, do que por realmente querer aproveitar a vista do amplo salão. Especialmente porque a única diferença com a parte antiga do prédio é que ali toda a rotina massacrante do tedioso trabalho de escritório podia ser vista a olho nu, como que numa grande jaula de circo. O que tornava essa ocasião uma exceção é que pôde notar algo que parecia se destacar no meio daquele mar de ternos e tailleurs cor de cinza chumbo e negro. Ele nunca fora muito bom com matizes. Na sua opinião, não existia “azul escuro”, “azul marinho' ou “azul celesta”, era tudo apenas puro e simples “azul”. Desta vez fora diferente, no entanto.



Dentre tantas cores facilmente confundíveis, logo ele soube identificar claramente que a echarpe translúcida que se enrolava no alvo e bem delineado pescoço e terminava por descer por cima do seio esquerdo até um pouco abaixo da cintura não era “roxo”, “uva”, “lilás” ou outra das infinitas variações possíveis, com a exceção de uma. Definitivamente, pensava ele consigo mesmo, a cor era violeta. É certo que a mulher não fugia ao padrão monocromático que predominava, mas aquela grande tira de tecido colorido tinha uma certo ar de rebeldia, algo que lembrava uma espécie de liberdade pessoal absurdamente incomum para todas aquelas cópias que batiam cabeça pelo salão. Era como se a flor que nomeia a cor houvesse brotado bem em meio aos restos de um imensa queimada. Aquele ponto radiante mais parecia um pequeno grito de revolta do que um simples acessório.



Apesar do ruidoso movimento do ponteiro que marcava os segundos no grande relógio de parede por sobre o móvel, ele já começava a perder a noção do tempo que já passara ali, esperando sem saber porquê. O silêncio esmagador que surgira após o fim da ligação da secretária era apenas rompido pela combinação quase hipnotizante do passar do tempo com o tamborilar mecânico de um lápis na mesa. Somado a isso, ainda se distraía com os movimentos suaves do tecido, que parecia ter vida própria, flutuando ao redor do corpo como que medindo cada aresta e curva, na esperança de revelar o que a roupa bem comportada escondia. Em seu transe tudo o que via era aquela imagem, a mulher que deveria ser do tamanho exato para que conseguisse aconchegar seu rosto em seu peito, mesmo não sendo ele mesmo um homem alto, escorada em uma mesa baixa que lhe pegava na altura exata dos quadris, fazendo com que repetidamente levasse uma das mãos à saia que cismava em tentar revelar algo além dos joelhos das duas pernas grossas entrelaçadas. As mãos também apoiadas na mesa e o blazer esquecido desabotoado mostravam uma blusa cinza-chumbo perfeitamente aderida ao desenho da silhueta, revelando os nuances de uma cintura que era apenas suficientemente cheinha para não ser considerada uma modelo, e de seios pequenos mas não inexistentes, que cabiam perfeitamente na palma das mãos e davam a ela o exato tom de uma mulher de verdade. Quando ela se levantava, antes que voltasse ao seu lugar ele era capaz de perceber a linha curva que ia da base de seus calcanhares, passando pelos tornozelos e coxas bem definidos, subindo pelo quadril esculpido e continuando pela cintura até chegar ao pescoço surpreendentemente fino e delineado, escondido em parte pela mancha violeta e que culminava no cabelos cacheados em um coque desleixado com inúmeros fios soltos e embaralhados por sobre a pele alva.



Ele via-se agora atravessando a passos largos porém calmos todo o salão, abrindo a porta de vidro com o coração na boca e encarando-a como se pudesse olhar para seus olhos e enxergar o desejo no fundo de sua alma. Era agora final de expediente, e qualquer um que ainda estivesse na mesma sala que os dois haveria de perceber o que acorria e sairia discretamente, deixando os dois a sós para atender a suas ânsias. Ele tomava-a entre suas mãos largas, e deslizava-as por todo aquele corpo que para ele era simplesmente delicioso, a despeito de não estar de acordo com quaisquer padrões de beleza. Virava-a de costas e tomava-lhe a echarpe para fazer dela uma extensão e ligação entre o corpo dos dois, com o fino toque do tecido passando por todo o corpo, até tapar-lhe os olhos ao mesmo tempo que lhe prendia as mãos. O toque de seus lábios grossos e úmidos em seu pescoço a fazia vibrar, com arrepios correndo da base da espinha até a nuca. Persianas fechadas e luzes desligadas até o hall de elevadores tornavam aquele momento só deles. Sorte os botões terem sido esquecidos, pois tal era sua voracidade que ele os teria arrancado sem o menor pudor. Sua blusa e sutiã era simplesmente fatiados com um abridor de cartas encontrado sobre a mesa, enquanto o barulho do fecho de metal do cinto de sua calça ressoava ao encontrar o chão. O barulho de um telefone ao fundo não era o suficiente pra tirar sua atenção, enquanto lhe subia a saia e consumava o ato com duas fortes pernas entrelaçadas em seu tronco.


-Téo. TÉO!!


O senso de realidade lhe caía como uma bomba.


-Téo, seu surdo! Presta atenção! Seu Pereira ligou, ele não vai conseguir vir porque ele teve uma emergência. Outra história pra boi dormir. Bom, ele pediu pra você voltar amanhã, tá? Ele disse que depois te diz sobre o que ele quer falar com você.


-Hã... Certo, certo. Tudo bem...


Ele se levantava como quem acaba se acordar de um sonho, ainda com o zumbido baixo da TV no pé de seu ouvido. Rapidamente olhou para a sala exatamente à sua frente, mas agora tudo o que restava era uma sala vazia, a memória de um sonho, e um pedaço de tecido cor de violeta que fora esquecido em cima de uma mesa baixa.

***

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Foco - Capítulo 3

Sua vida até esse momento havia lhe trazido fatos sobre ele mesmo de certa maneira bastante interessantes, isso é fato. Mas talvez ter duas mortes como principais lembranças depois de pouco mais de uma década e meia de existência não fosse exatamente algo a ser muito celebrado. Ainda mais quando uma delas significou a despedida de uma das pessoas mais importantes na formação de quem ele era agora. De certa forma, no entanto, servia de consolo saber que muito ainda o esperava ao longo de seu caminho.


Uma briga, dois nomes, e um meio sorriso


É fato que omiti um evento muito importante para o desenvolvimento de nossa narrativa. Mais precisamente aquele que falava sobre um certo ganho. Pois bem. Creio que nos entretemos demais nos momentos finais entre ele e seu avô, mas vamos então voltar ao ponto que buscávamos. O ganho foi, de certa maneira, uma surpresa. Poucos dias depois de sua visita ao cemitério, houve a descoberta de um objeto estranhamente familiar.


Uma breve descrição:


Quando não estava entretido com o mundo à sua volta, buscava refúgio dentro do mundo que ele mesmo havia criado. Não é possível dizer que, nesse aspecto particular, fosse muito diferente que qualquer outro adolescente comum. Para ele, seu quarto não era apenas o lugar onde se passava algumas horas em sono pesado, mas significava também o lugar onde se encontrava tudo aquilo que necessitava para viver em paz consigo mesmo. O cômodo retangular possuía grandes janelas em toda a extensão de um dos lados maiores, exatamente à direita de quem entrava, como se o próprio aposento houvesse adquirido a personalidade observadora de seu residente. A grande estante repleta de livros e revistas empilhados uns sobre os outros, embutida no pequeno espaço logo ao lado da porta criava uma espécia de túnel, que separava o mundo exterior dos mistérios guardados dentro de suas paredes. O imenso armário que servia de plano de fundo a quem olhasse a partir do lado de fora escondia gavetas e mais gavetas, todas repletas de pequenas lembranças, desde pequenos objetos até desenhos que traziam a lembrança de momentos únicos, repletos de sentimentos e imagens. Logo seriam instaladas mais gavetas, e o motivo é bem simples: em cima da cama de solteiro que ficava exatamente entre a porta e o armário, e diretamente voltada para a janela, havia uma câmera fotográfica, calmamente aninhada na colcha feita de retalhos coloridos em forma de losangos, como que esperando por alguém em especial. E esse alguém em especial logo a reconheceu, primeiro como uma estranha naquele ambiente tão bem conhecido, depois como uma velha amiga de lembranças antigas.


-Hã... o que é isso?, dirigindo-se à sua mãe, que naquele momento estava em sua cama encarando um antigo porta-retratos, ainda com seu rosto mostrando as marcas de dias de lamento por seu pai falecido.

-É a câmera do seu avô. No testamento dele estava que você devia ficar com ela, então trouxe hoje de manhã quando estava arrumando algumas coisas na casa dele. Ela ficava lá em cima da estante da sala, perto daquele toca-discos antigo, não lembra? Falando nisso, trouxe ele também. Você sempre gostou dessas coisas antigas....


É claro, ele se lembrava. Não tinha como esquecer. Aquela mesma câmera que agora se escondia em suas mãos já fora muitas vezes o assunto principal das conversas dos dois. Segundo seu avô, aquela antiga peça de maquinaria, que por certo já deveria estar em um museu, havia registrado praticamente todos os momentos importantes da vida daquela família de três pessoas. E agora aquele pequeno pedaço de plástico e metal era todo seu, como um antigo membro da família que acabava de conhecer o mais novo rebento.

* * *


Sua reação foi prática. De certa maneira, ele agora sabia que seu avô havia encontrado uma maneira de se manter presente mesmo após ter partido. E após ter entendido isso, foi logo em busca de mais algumas memórias.


Uma casa, e sua identidade


A casa de seu avô conseguia refletir exatamente o perfil de seu antigo ocupante. Em cada detalhe do pequeno quarto-e-sala que o ancião ocupara era possível encontrar algo que parecia gritar seu nome. Mesmo apesar de ter vivido ali apenas após a morte de sua esposa, a atmosfera que a casa conservava parecia secular. Desde a entrada, onde se via na sala os móveis feitos na madeira seguindo quase um estilo rococó, com cada parte da peça trabalhada com o único propósito de exibir uma exuberância única. O carpete com manchas de vinho, cigarro e café revelavam um homem entregue à vícios mundanos. As cortinas drapeadas que encobriam completamente as janelas fechadas durante anos criaram um certo ar estagnado, com seu silêncio quebrado apenas pelo barulho grave e estridente dos Long Plays de Jazz e Bossa Nova ouvidos através de duas caixas de som praticamente estouradas. Estes, e as pilhas de livros antigos espalhadas por cada canto do cômodo eram praticamente toda a companhia da qual compartilhava o velho, com exceção das frequentes visitas do neto. Fora ali que ouvira de seu avô todas as histórias a respeito de sua própria história, e de certa maneira o lugar representava o início de um novo capítulo. Além deste, apenas outro cômodo na casa vale um comentário. Isso porque é lá que nosso personagem conhece mais sobre seu avô, e sobre si mesmo. O quarto de empregada, por não ser utilizado como prega seu nome, fora transformado em uma verdadeira arca, onde tudo ali contido possuía imenso valor para seu dono. Ao neto, no entanto, fora negado qualquer acesso àquele baú do tesouro, até aquele momento. Não que houvesse algo a esconder, mas o homem que utilizava gravatas roxas com pequenos desenhos de animais tinha lá suas manias. Agora, todos os segredos ali guardados estavam a um passo da revelação.

O toque frio da chave, e o som metálico que esta produzia quando encontrava a borda do chaveiro durante as rápidas rotações executadas ao redor de seu indicador apenas davam ao momento o leve toque de suspense que o tornavam memoravelmente especial. A grande chave de latão dourado deslizava em direção à fechadura, enquanto em sua mente se dispersava tentando imaginar o que existiria por trás daquela porta que parecia levar a uma dimensão completamente diferente. Sua respiração travou, da mesma maneira que o fez a antiga chave na fechadura gasta ao tentar abri-la, mas um leve esforço possibilitou que a chave finalmente raspasse o metal ao girar duas vezes sobre si mesma, liberando a porta que abriu levemente como se estivesse tímida ao mostrar o conteúdo da sala a alguém estranho.


E sim, era realmente algo de outro mundo. Pelo menos para ele. O quarto era pouco mais largo que um corredor, e cada centímetro de suas paredes estava coberto com centenas de imagens, que iam do rodapé até o teto. Todas aquelas figuras, muitas vezes sobrepostas umas às outras, levavam quem quer que estivesse dentro daquela redoma figurativa à uma viagem através de memórias de dezenas de pessoas diferentes e absolutamente desconhecidas, mas que de alguma forma faziam total sentido ao lado umas das outras. Preto e branco se misturavam com cores vibrantes e fotografias em cromo em tons de sépia, criando uma fusão de matizes somente comparável com um arco-íris caleidoscopicamente embaraçado. Grandes arquivos espalhados pela sala de modo que não tocassem nas paredes guardavam dezenas de outras imagens, assim como negativos, testes de contato, filtros e lentes. Em uma das paredes menores se escondia por baixo de caixas e de um ampliador uma pia com pinças e bacias de produtos químicos, que por sua vez davam ao ambiente um odor levemente ocre. Para chegar de um lugar ao outro, era ainda necessário escalar alguns montes de revistas, livros e LP's antigos. A capa de um disco de Ella Fitzgerald se encontrava abandonada e desfeita de seu conteúdo a um canto, enquanto no outro Elis Regina e Whitesnake faziam um par estranhamente mais diferente e atual do que esperado para o gosto de alguém que já havia visto e ouvido de tudo. Não se podia negar que o velho gostava de novidades. O único objeto intacto, livre de poeira e absurdamente deslocado em meio aquilo tudo, exatamente por ser a única coisa realmente arrumada em um local definido, era uma pequena burra, um baú de madeira forrado com couro. Dentro dela ele encontrou muito mais do que imagens e sons, pois ali estavam simplesmente todo objeto que trazia consigo o sentimento e a memória de cada momento importante da vida do homem. Fotos de uma esposa falecida, cartas repletas de declarações de amor, documentos de uma vida que já não existia mais. O saque estava completo. Dezenas de discos, lentes, flashes e filmes para a câmera, alguns livros e a burra. Ao voltar pra casa, o que levava consigo era mais do que simples objetos. Eram pequenas partes da vida de uma pessoa, que haviam se revelado na verdade muito mais parte de sua própria do que ele imaginava. Passou dias analisando cada pequena parte de seu saque, cantando junto com cada um dos discos de pessoas que ele sequer havia ouvido falar e experimentando como era o mundo através do visor de sua nova câmera.


* * *

Foco - Capítulo 2

Uma pessoa incomum. Um evento inesperado. Uma imagem. A primeira de muitas, com certeza.


Não existe jeito certo para lidar com esse tipo de acontecimento. Como explicar para uma criança o complexo jogo de emoções que leva uma pessoa a tirar a própria vida? Simplesmente não se explica. Diz-se “não foi nada, não se preocupe”, e tenta fazer com que ela não fique traumatizada a ponto de precisar de ajuda médica em algum momento. Talvez essa fosse a maneira certa, talvez não. Isso não importa muito. Ele mesmo não se lembrava da reação dos familiares em relação a isso. Na verdade, demorou alguns anos até que realmente se desse ao trabalho de tentar entender o que ocorrera naquela manhã longínqua. E mesmo depois que compreendeu a imensidão da situação, tudo o que fez foi guardar pra si o seu próprio sentimento em relação ao que vira. Só o que queria para si eram aqueles olhos. De certo modo um encontro absolutamente metalingüístico, onde o observador se revela observado por seu próprio objeto de interesse, numa variação cíclica, onde cada brilho existente nas pupilas de cada um reflete infinitamente entre os dois, como que em um jogo de espelhos.


Um jogo particularmente divertido, e um pequeno avanço dos eventos


Chegamos a um ponto importante em nossa pequena viagem por estas memórias. É preciso frisar que, após esse marco inicial, seu confronto com eventos de maior importância foi substancialmente reduzido ao longo de alguns anos. Mas isso não o impediu de desenvolver seu pequeno talento cada vez mais. Quanto mais avançava sua capacidade de entender o que acontecia à sua volta, mais era capaz de perceber as matizes existentes no universo que ligava cada fractal de um momento específico com seus personagens. Cada imagem que guardava em sua mente trazia um arquivo não só de detalhes visuais, mas uma completa configuração de sentimentos, sensoriais, emocionais e racionais que explicavam a existência da situação guardada. O fato é que esses registros se tornaram sua principal atividade ao longo dos anos, preenchendo cada vez mais o espaço vazio deixado por outras partes de sua vida. Não se envolvia em esportes, ia a festas com conhecidos e tampouco se integrava facilmente com outras pessoas. Era de certa forma deslocado, até mesmo por realmente não se importar em fazer esse tipo de coisa. Tinha algo muito mais importante a fazer, e, com certeza, muito mais divertido. O problema é que raramente a vida segue o plano que nós mesmos criamos.


Uma perda, um ganho e a cor de um sentimento


As surpresas simplesmente se acumulam ao longo da vida de uma pessoa. Como poderia ser diferente com ele? Foi necessário apenas o momento exato para que um mundo desabasse, e outro absolutamente novo surgisse no lugar como que por mágica.


O que causou a mudança? A perda.


Mais de uma década depois, o inevitável novamente bate a sua porta. Dessa vez, no entanto, não só não era esperado, como também não era bem-vindo. Não era apenas um ente querido. Era o mais querido de todos. Não possuía irmãos ou primos com quem compartilhasse seus momentos. Seus pais eram, para dizer o mínimo, ausentes. E agora, aquele que estava sempre presente quando necessário, que sempre tinha a resposta de tudo e que compreendia todos os pensamentos nunca mais estaria acessível. A morte de seu avô tirava um pouco da cor do mundo.


Uma despedida, e a cor mais triste do mundo


O dia ensolarado revelava cada minucioso detalhe da situação, e as cores vibrantes presentes no gramado e nas árvores que floresciam contrastavam de maneira absurda com a onda de tecido negro que se aglomerava ao redor da grande caixa de madeira. Há quem diga que dias claros como aquele indicam que a pessoa foi em paz. Ele preferia acreditar nisso, apesar de não enxergar tão perfeitamente as cores pulsantes daquele dia em especial. Para ele, tudo adquirira uma palidez indescritível, como se aquele longínquo lápis branco houvesse ressurgido para agourá-lo. A primeira imagem que guardou consigo foi a visão que teve de longe, onde pôde captar um pouco de tudo que havia ali. Cada nuance de cor, cada sombra desenhada por cada detalhe das árvores e das lápides. Cada ínfima característica da situação foi se desenhando em sua mente, com a única diferença residindo nas pesadas cores que iam em desacordo com a realidade. Tons de verde no rosto de cada pessoa, violetas que permeavam as sombras deixadas por cada ser daquela cena, um marrom escuro que tornava aquela mistura algo detestável, como que algo levemente pútrido. Em sua mente, tal união de cores criara algo único e novo. Mas nem toda novidade é boa, e aquela com certeza não era. Diante de seus olhos todo aquele cenário fundia-se em uma única cor, indescritível, mas ainda assim permeada de profundos sentimentos. E no fundo de sua consciência, ele sabia que aquilo era algo realmente horrível de se ver.


Olhos nos olhos, e uma conversa silenciosa


Como que em um deboche, chegara sua vez de dizer adeus pela última vez. Não havia ansiedade em seus olhos. Nem mesmo o prazer que residia em sua relação antropofagicamente abusada com tudo que digeria através de seus olhos aparecia através das pupilas vidradas. A expectativa era a de que tudo aquilo passasse logo, e se tornasse mais uma no álbum de lembranças. Mas o tempo é hábil em brincar conosco. E para ele, a visita ao caixão aberto do avô pareceu durar uma eternidade.

A figura estirada no forro de cetim marfim pouco mantinha da pessoa que fora um dia. A grande barba manchada que cobria a maior parte do pescoço até as orelhas preponderantes e os pêlos do nariz parecia ter encolhido, como se esta possuísse uma vida própria, que lhe havia abandonado juntamente com a do velho. Os lábios finos dos quais antes emergiam grandes gargalhadas encontravam-se cerrados e escondidos entre os pêlos, sem dar a impressão de que dali sairia uma palavra amável e acolhedora, como tantas vezes fizera. O longo cabelo alvo escorria pelos ombros largos, a despeito da falta que fazia no escalpo ancião. As marcas e manchas cultivadas pelos anos praticamente sumiam entre as rugas da face. Para quem o conhecia, era muito simples reconhecer e assinalar uma infinidade de pequenos detalhes na superfície rugosa, cada qual relacionado a uma certa expressão dentre todas as que eram figurinhas certas e fáceis de surgir no rosto desgastado. O sorriso fácil, que repuxava os cantos da boca e resultava numa ampla gargalhada. O olhar severo e bondoso que consumia as pálpebras e todas as partes ao redor dos pequenos olhos, chegando a mover o grande nariz para uma posição que tornava toda aquela expressão zangada mais um motivo para sorrir do que para se entristecer. As grandes sobrancelhas em forma de lagartas, que adquiriam praticamente qualquer formato que se pudesse imaginar, e até alguns que não se podia.

Tudo ali revelava um pouco do homem que outrora possuíra aquele corpo. O terno de bom corte, condizente com seu bom gosto, e sua exigência pelo melhor que sua simplicidade pudesse oferecer. O grande círculo amarelo em volta de seu anelar mostrava sua dedicação sem limites à esposa que o deixara muitos anos antes, e a mancha negra exatamente abaixo do mesmo revelava a resistência do amor de um homem em tempos de dificuldades. A mancha era resíduo de um tempo em que existiam apenas duas opções: ou se sustentava um filho, ou se apegava ao último resquício de luxo da vida. O anel de hoje era uma réplica, adquirida muitos anos depois, para cobrir a tatuagem que eternizou o laço entre duas pessoas. As mãos entrelaçadas por cima do tórax farto mostravam uma posição recorrente, onde os dedões gorduchos faziam um sinal positivo, como que dizendo “não se preocupem, estou bem!”. O lenço em seu bolso fazia par com uma gravata borboleta roxa com pequenos desenhos de um patinho de borracha. Pomposo, fino e escrachado, ele era na morte como foi em vida. Ele havia partido, mas nada havia mudado. Um longo dia terminava, e era hora de ir para casa.


...



Foco - Capítulo 1

A palavra talvez não seja “privilegiada”. Talvez o termo correto seja “diferente”, ou simplesmente “característica”. Sim, talvez “característica” seja a melhor maneira de descrever. Ele sempre possuiu uma visão de mundo realmente característica. Desde o primeiro momento do qual consegue recordar, sempre teve em si um espírito observador. Sempre reparava em cada detalhe à sua volta, e era capaz de guardá-los em sua mente como verdadeiras pinturas. Desde as mais classicistas, com todos perfeitamente eternizados em suas posições, até os modernistas ou expressionistas, onde tudo estava em qualquer lugar menos em seu devido lugar. Uma pena ele não ter o menor talento para pintura.

Ser alguém com uma percepção do mundo ao seu redor extremamente aguçada poderia ser algo a ser celebrado. Poderia. Isso não inclui aquelas pessoas que exatamente por causa desse sentido elaborado simplesmente escolhem ser meros expectadores diante do passar do tempo. E ele escolheu ser uma dessas pessoas. Seu nome? Talvez voltemos a isso adiante, mas não é importante. Tampouco sua figura, ou o modo como se vestia, a maneira como andava, o jeito de se comportar. Ele não era ninguém. Ninguém cuja presença devesse ser notada. Ele escolheu ser uma sombra, sempre escondida sob a égide da indiferença humana. Mas ele não era alguém digno de pena, longe disso. Esta foi sua escolha, e esta é sua história.


...


Um exercício, pra começar:


Imagine uma criança que ao contrário de todas as outras não se importa de não ser escolhido pra brincadeira. Imagine uma criança que na verdade tem por diversão o fato de observar cada detalhe, cada nuance das brincadeiras de todas as outras crianças. É algo difícil de imaginar possível, suponho. Mas pense agora na coisa que te dá mais prazer. O sentido de tudo é exatamente esse. O prazer move o mundo. Porque não moveria uma simples criança?


O Azul, o Amarelo, o Vermelho e o bicho-da-seda


Luz. O começo de tudo, não é? Bom, talvez não de tudo. Mas com certeza é o começo desta história.


Uma informação, pra continuar:


O olho humano é capaz de perceber milhões de cores. No entanto, apenas 3 delas podem ser consideradas fundamentais. São cores que teoricamente não podem ser decompostas, e que na verdade são matéria-prima para todas as outras. São o azul, o amarelo, e o vermelho.


Agora, a grande pergunta: por que o comentário? Tudo tem seu tempo. Logo você entenderá.


Nossa história se mescla com lembranças, e é a primeira delas que visitamos agora.


Três ou quatro anos. Ele não se lembra bem da data. Mas a data não é o importante aqui. O local também não. O importante é o que ele viu.


Um parque para crianças. Quantos desses será que existem no planeta? Quantos escorregadores com balanços, escadas e pequenas casinhas de madeira se encontram espalhadas por todos os cantos do mundo? Muitos, com certeza. O suficiente para dar muito trabalho a quem quiser contar. Mas a questão não é essa. O que nos interessa nesse momento é que todos possuem uma característica em comum. São todo pintados em azul, amarelo e vermelho. Por quê? Simples. Lembra das crianças? Pois é, elas mesmas. Tudo por causa delas. Azul, amarelo e vermelho são as primeiras cores que elas reconhecem. As primeiras cores que aprendem o nome. Verde, rosa? Ora, isso é para quem quer se mostrar. Os simplistas mantêm a tradição. E ele era um simplista. Sempre foi. Seu detalhismo surgiu daí. Ou existe algo mais simples do que o mais imperceptível detalhe de uma situação?

Voltemos ao que nos interessa. O parque para crianças. Com três ou quatro anos, é um lugar perfeitamente normal para se estar. Ao longe era possível ver seu avô lendo o jornal, sempre ligeiramente abaixo da linha dos olhos. Talvez ele não fosse o único a ser um bom observador. Uma manhã de céu limpo, com o sol refletindo no prédio frente ao qual o parquinho se encontrava. Nada de incomum. Nada de especial, não fossem duas descobertas que ele estava prestes a fazer.


Primeira descoberta: O azul, o amarelo, o vermelho, e o branco


Ele estava intrigado. Palavra difícil para uma criança de três ou quatro anos. Mas é assim que ele estava. Intrigado. Como já sabemos, ele reparava em tudo. E ao ir para a escola e entrar em contato com um mundo completamente novo, pôde realmente aproveitar tudo que isso poderia oferecer-lhe. Bom, todos sabemos como é a vida de uma criança de três ou quatro anos numa escola. Ela come. Ela dorme. Ela brinca. Ela come de novo. E, o mais importante para nossa história, ela pinta. O problema era que ele, como dito antes, nunca apresentou o menor talento para pintura. Mesmo para uma criança de três ou quatro anos. Ele preferia, então, observar. Não que sua professora não houvesse notado o estranho comportamento. Não seria a primeira, tampouco a única. O que acontece é que depois de muito insistir, acabou por perceber que o garoto não gostava mesmo daquilo. Bom, não era que não gostasse. Simplesmente preferia observar o que os outros estavam pintando. Cada céu azul, cada sol amarelo, cada flor vermelha. Mas algo o deixou curioso. Curioso a ponto de deixá-lo intrigado. Havia um lápis que ninguém usava. Era o maior, e geralmente ficava largado dentro da caixa. Só era notado quando sumia, e consequentemente surgia um espaço vazio entre os lápis das mais variadas cores. Para que, então, servia aquele lápis branco?

Tal questionamento voltava sempre à sua mente. Uma criança de três ou quatro anos não tem muito no que pensar. Logo é possível dizer que isso ocupava boa parte de seus pensamentos. E nesse dia, no parque com escorregadores, balanços, escadas e casinhas de madeira, essa pergunta voltou. Levantou-se do chão espalmando as calças, e saindo do lugar de onde observava as outras crianças, dirigiu-se ao seu avô perguntando-lhe o que era o “branco”, e porque ninguém usava o tal lápis.

-Oras, - disse-lhe o avô – o branco é uma cor. Mas não é só uma cor. Ela é todas as cores juntas. Vou te mostrar. Vê aquele montinho de fios brancos ali naquela árvore? Aquilo ali é a casa de um bichinho muito bonito, chamado bicho-da-seda. Ele quando é novo, é apenas uma lagarta sem cor. Quando já é mais velho, faz essa casa branca para ele. E, quando finalmente sai de lá, é todo colorido. Então todas as outras cores estão dentro do branco, entendeu? O azul do céu, o amarelo do sol e o vermelho da flor que seus amigos desenham na verdade estão todos no branco, são todos parte dele. É por isso que ninguém usa o branco. As outras cores sumiriam dentro do branco. É como se uma grande nuvem descesse bem em cima desse parquinho colorido. Você não o veria, não é?


O avô encerrou com uma grande gargalhada, mostrando os dentes escondidos pela barba manchada.


E então,


Segunda descoberta: o azul, o amarelo, o vermelho e o inesperado


O pequenino menino voltou ao seu lugar, sentando-se no chão e sujando suas calças. Não que isso importasse para uma criança. Ainda mais para ele. Estava distraído admirando as outras crianças, e pensando no que o avô lhe tinha dito.


É importante ressaltar que mesmo ele tendo fascínio pelo que via, não menosprezava aquilo que ouvia, ou sentia. Nunca foi assim. Nem mesmo daquela vez.


O baque surdo foi surpreendente. Não pelo som em si. Mas sim pelo fato de estar bem ao seu lado. A reação foi imediata, como se soubesse inconscientemente que existia ali, junto daquele som, algo muito mais interessante para se ver do que naquele parquinho cheio de crianças. E ele estava certo. Ele nunca havia visto olhos tão bonitos. Tão calmos, ou mesmo tão íntimos. Nunca mais veria olhos como aquele. O mais incrível é que para ele, a beleza não estava na cor dos olhos. Na realidade, é a única cor da qual nunca se lembrou. A única que perdeu a importância frente ao sentimento existente naqueles olhos. A lembrança seguinte reside em seu avô, tampando-lhe os olhos e levando-o para o mais longe possível. Ele ainda pode sentir o toque suave e ao mesmo tempo áspero das mãos do avô. A textura rugosa da pele já antiga, com suas veias já reveladas pela cobertura fina. Mas era tarde. Ele lembraria daquela cena como se ocorresse em sua frente toda vez que desejasse. E a levaria consigo para sempre. O céu azul celeste. O prédio amarelo-ovo por causa do sol. A calçada vermelho sangue por causa do corpo estendido a seus pés. Era um fim. Mas apenas o começo.


...