domingo, 5 de setembro de 2010

Dani

"E não fique me encarando com esses seus grandes olhos castanhos", dizia. "Não faz assim, sabe que eu não resisto."


Os grandes olhos castanhos sorriam na fria noite de domingo.

Se conheciam há anos, mas jamais seriam capazes de dizer o que eram ou o quanto significavam um para o outro.

Já haviam sido amigos, inimigos, conhecidos, confidentes, amantes. Inconstantes.

Ele cedia, e cessava de tentar fingir que ignorava. Jamais fora páreo para o brilho daquele olhar. Muitos não percebiam, claro. Pareciam imunes ao ardor de todos os sentimentos e pensamentos que seu simples vislumbre era capaz de transmitir. Era como se estivessem ajustados em sua frequência.

"Dani, assim você acaba comigo", dizia, apenas para terminar com um longo selinho, mais de carinho do que de paixão.
"Anda Fabinho, volta logo pra cama!", foi a resposta de Dani.

"Fabinho". Nunca se acostumara com isso. Qualquer outra pessoa teria imenso pudor em chamá-lo de qualquer outra coisa diferente de "Doutor Teixeira". Mas há doze anos que aquela criança de pele morena sequer admitia chamá-lo de qualquer outra coisa que não fosse "Fabinho".

Ele ria.

Quando se conheceram, Dani mal tinha saído da adolescência, se é que algum dia saiu. Com apenas 17 anos, justificava-se o apelido de "criança" que Fábio, do alto de seus 44 anos, havia lhe dado.

Haviam sido apresentados por – improváveis – amigos em comum.

"Dani, esse é o Doutor Teixeira. Dr. Teixeira, Dani."
Dani olhou Fábio de cima a baixo.
"Esse Dr. Teixeira tem um nome?", questionou, encarando-o de uma maneira no mínimo provocante.
"Tem", respondeu. "Fábio."
"Fabinho!", e concedeu-lhe dois beijos na face. "Muito Prazer."
"Não é Fabinho, é Fábio."
"Fabinho!", insistiu Dani, já dando as costas e dirigindo-se para algum lugar onde estivessem se divertindo mais do que ali.

Continuaram a se encontrar, sempre na companhia de outras pessoas. Mal trocavam cumprimentos, no máximo frases aqui e ali, entre um drinque e outro. Não que não houvesse surgido algum interesse entre ambos, apenas não se davam ao trabalho de apostar nisso.

Fábio havia acabado de chegar no bar. Acreditava já estar atrasado, mas a chuva que castigava parecia ter atrapalhado mais a seus amigos do que a ele. Poucos minutos se passaram, e após várias pessoas entravam em busca de abrigo. Ele já não notava nenhuma delas, entretido com o solitário filme em preto e branco que era exibido na grande TV do lugar. Uma delas notou-o, no entanto.

"Oi, Fabinho", disse Dani, encostando de leve suas mãos nos ombros largos de Fábio.
"Dani?"
"Claro que sou eu. Alguém mais te chama de Fabinho?"
"É, realmente não tem mais ninguém. Mas o que você está fazendo aqui? Está só?"
"Olha, por enquanto estou. Marquei com um pessoal aqui, mas com essa chuva, tão todos me ligando dizendo que vão se atrasar."
"Sei como é. Comigo foi a mesma coisa. Senta aí, vou pedir um drinque pra você."

Conversaram por um longo tempo. O suficiente para que Dani agora se encantasse pela experiência de Fábio, enquanto este passava a enxergar em Dani muito mais do que uma simples juventude sem limites. Uma tensão começava a tomar forma no pouco espaço entre os dois, sexual, intensa, e olhares de desejo e declarações em completo silêncio se desenhavam em pleno ar.

A companhia de ambos havia chegado e, ainda que houvessem se separado, não paravam de pensar um no outro. Seus olhos buscavam uns aos outros em meio ao espesso mar de gente, cores, perfumes e bebidas alcoólicas, gerando sorrisos constrangidos a cada encontro.

A noite findava, e ambos partiam quase que ao mesmo momento. Amigos foram embora, deixando-lhes mais uma vez a sós, enquanto aguardavam por um táxi.

"Oi de novo", soltava Fábio.
"Oi."
"Pelo menos a chuva passou, não é?"
"Verdade. Mas agora também nem adiantava mais, a noite já acabou mesmo."
"Já?"
"Já, ué. Por quê?"
"Não sei... pensei se você não gostaria de esticar um pouco, ir pra um outro lugar."

Dani sorria, como que dizendo "ok, entendi o que você quis dizer".

"Está bem, Doutor Teixeira, você tem alguma ideia?", perguntava, já sabendo a resposta.
"Tenho uns vinhos muito bons lá em casa, pedindo pra serem abertos."
"Ok, então! Vamos lá!", já segurando no braço de Fábio, como uma dama que acompanha seu cavalheiro.

O taxista preferiu ignorar o que via acontecer em seu banco traseiro. Os vinhos, sequer tiveram a chance de ver o que quer que fosse. Mal conseguiram passar pela porta da casa de Fábio sem antes tirar cada camada de tecido que os envolvia. No quarto, no entanto, já chegaram com nada além de trajes íntimos. Se há poucas horas eram praticamente desconhecidos, agora entregavam-se de tal modo que seriam capazes de detalhar cada centímetro do corpo um do outro. Dani cedia aos avanços de Fábio como uma presa que reconhece a superioridade de seu predador, permitia que Fábio dominasse a situação de um jeito que jovem algum jamais poderia ser capaz. Se a idade por algum motivo apresentava empecilhos, Fábio parecia fazer questão de mostrar a Dani o exato oposto. Parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, beijava-lhe dos pés a nuca, abraçava firme, mas suavemente, apertava, mordia, explorava o corpo de sua companhia por completo com seus lábios e língua, levando Dani ao delírio em meio àquele ato sujo e voraz, com um sentimento de preenchimento completo seguido de um longo gozo em puro êxtase.

E isso já fazia uns bons doze anos.

Conviveram nutrindo-se de encontros amorosos por apenas algumas semanas. Diversos motivos fizeram-os separar-se, mas outros tantos juntavam-os novamente ao longo de mais de uma década. Relacionamentos surgiram e esvaneceram, pessoas vieram e foram embora. Jamais esconderam um do outro que, por diversas vezes, sempre havia um outro alguém naquele momento, mas quando estavam juntos aquilo não importava. Até que Dani decidiu ir estudar no exterior, e Fábio teve outras responsabilidades com as quais se preocupar. Quase dois anos se passaram, antes que Dani retornasse. No dia de sua chegada, quando apenas um amigo sabia que estaria voltando, Fábio aguardava ansiosamente no portão de desembarque. Doze anos depois daquele primeiro encontro, ele estava lá.

"Senti sua falta", disse Fábio.

A expressão de surpresa no rosto de Dani dava lugar ao lisonjeio.

"E se eu disser que eu também?", respondia, já com um leve carinho nos lábios do eterno amante.
"Você tem algum lugar em especial pra ir?"
"Tenho."
"Tem?"
"Tenho."
"Onde?"
"Onde você quiser me levar."

Passariam os próximos dois dias na casa de Fábio, a maior parte do tempo sem colocar sequer um pé para fora dos lençóis.

"Dani", chamava Fábio, montado novamente em sua fantasia respeitável de terno e gravata, como todo bom advogado.
"Dani", chamava novamente, já desistindo de acordar aquela visão que, para ele, estava bem próxima do que deveria ser o paraíso – se é que tal coisa existia.
"Ei!", dizia a voz sonolenta de Dani por debaixo dos lençóis. "Aonde você está indo?"
"Já é segunda de manhã, preciso dar um pulo no escritório."
"Ahh, não vai não!", brigava Dani. "Amanhã não é feriado? Então hoje também é!"
"É, sim. Mas eu preciso resolver uma coisinha lá e já volto. Trago o almoço, o que você quer?"
"Hmmm... Alguma coisa gostosa!", respondia, alisando partes sensíveis do corpo de Fábio por cima do tecido.

Fábio sorria.

"Vamos, venha fechar a porta", dizia.
"Tá bom, tá bom. Olha, eu acho melhor que você não esteja indo encontrar com outra pessoa, Senhor Doutor Fabinho Teixeira."

Mais sorrisos.

"Depois desse final de semana, você acha mesmo que eu ainda teria pique pra isso?"
"Olha, não sei não, mas acho bom que você tenha pique pra mim quando voltar!"

A voz de Dani exprimia uma revolta simplesmente deliciosa para os ouvidos de Fábio.

"Daniel, você não tem jeito! Vai, me dá um beijo aqui, e não esquece de trancar essa porta. Daqui a pouco estou de volta."