quinta-feira, 1 de maio de 2008

Foco - Capítulo 1

A palavra talvez não seja “privilegiada”. Talvez o termo correto seja “diferente”, ou simplesmente “característica”. Sim, talvez “característica” seja a melhor maneira de descrever. Ele sempre possuiu uma visão de mundo realmente característica. Desde o primeiro momento do qual consegue recordar, sempre teve em si um espírito observador. Sempre reparava em cada detalhe à sua volta, e era capaz de guardá-los em sua mente como verdadeiras pinturas. Desde as mais classicistas, com todos perfeitamente eternizados em suas posições, até os modernistas ou expressionistas, onde tudo estava em qualquer lugar menos em seu devido lugar. Uma pena ele não ter o menor talento para pintura.

Ser alguém com uma percepção do mundo ao seu redor extremamente aguçada poderia ser algo a ser celebrado. Poderia. Isso não inclui aquelas pessoas que exatamente por causa desse sentido elaborado simplesmente escolhem ser meros expectadores diante do passar do tempo. E ele escolheu ser uma dessas pessoas. Seu nome? Talvez voltemos a isso adiante, mas não é importante. Tampouco sua figura, ou o modo como se vestia, a maneira como andava, o jeito de se comportar. Ele não era ninguém. Ninguém cuja presença devesse ser notada. Ele escolheu ser uma sombra, sempre escondida sob a égide da indiferença humana. Mas ele não era alguém digno de pena, longe disso. Esta foi sua escolha, e esta é sua história.


...


Um exercício, pra começar:


Imagine uma criança que ao contrário de todas as outras não se importa de não ser escolhido pra brincadeira. Imagine uma criança que na verdade tem por diversão o fato de observar cada detalhe, cada nuance das brincadeiras de todas as outras crianças. É algo difícil de imaginar possível, suponho. Mas pense agora na coisa que te dá mais prazer. O sentido de tudo é exatamente esse. O prazer move o mundo. Porque não moveria uma simples criança?


O Azul, o Amarelo, o Vermelho e o bicho-da-seda


Luz. O começo de tudo, não é? Bom, talvez não de tudo. Mas com certeza é o começo desta história.


Uma informação, pra continuar:


O olho humano é capaz de perceber milhões de cores. No entanto, apenas 3 delas podem ser consideradas fundamentais. São cores que teoricamente não podem ser decompostas, e que na verdade são matéria-prima para todas as outras. São o azul, o amarelo, e o vermelho.


Agora, a grande pergunta: por que o comentário? Tudo tem seu tempo. Logo você entenderá.


Nossa história se mescla com lembranças, e é a primeira delas que visitamos agora.


Três ou quatro anos. Ele não se lembra bem da data. Mas a data não é o importante aqui. O local também não. O importante é o que ele viu.


Um parque para crianças. Quantos desses será que existem no planeta? Quantos escorregadores com balanços, escadas e pequenas casinhas de madeira se encontram espalhadas por todos os cantos do mundo? Muitos, com certeza. O suficiente para dar muito trabalho a quem quiser contar. Mas a questão não é essa. O que nos interessa nesse momento é que todos possuem uma característica em comum. São todo pintados em azul, amarelo e vermelho. Por quê? Simples. Lembra das crianças? Pois é, elas mesmas. Tudo por causa delas. Azul, amarelo e vermelho são as primeiras cores que elas reconhecem. As primeiras cores que aprendem o nome. Verde, rosa? Ora, isso é para quem quer se mostrar. Os simplistas mantêm a tradição. E ele era um simplista. Sempre foi. Seu detalhismo surgiu daí. Ou existe algo mais simples do que o mais imperceptível detalhe de uma situação?

Voltemos ao que nos interessa. O parque para crianças. Com três ou quatro anos, é um lugar perfeitamente normal para se estar. Ao longe era possível ver seu avô lendo o jornal, sempre ligeiramente abaixo da linha dos olhos. Talvez ele não fosse o único a ser um bom observador. Uma manhã de céu limpo, com o sol refletindo no prédio frente ao qual o parquinho se encontrava. Nada de incomum. Nada de especial, não fossem duas descobertas que ele estava prestes a fazer.


Primeira descoberta: O azul, o amarelo, o vermelho, e o branco


Ele estava intrigado. Palavra difícil para uma criança de três ou quatro anos. Mas é assim que ele estava. Intrigado. Como já sabemos, ele reparava em tudo. E ao ir para a escola e entrar em contato com um mundo completamente novo, pôde realmente aproveitar tudo que isso poderia oferecer-lhe. Bom, todos sabemos como é a vida de uma criança de três ou quatro anos numa escola. Ela come. Ela dorme. Ela brinca. Ela come de novo. E, o mais importante para nossa história, ela pinta. O problema era que ele, como dito antes, nunca apresentou o menor talento para pintura. Mesmo para uma criança de três ou quatro anos. Ele preferia, então, observar. Não que sua professora não houvesse notado o estranho comportamento. Não seria a primeira, tampouco a única. O que acontece é que depois de muito insistir, acabou por perceber que o garoto não gostava mesmo daquilo. Bom, não era que não gostasse. Simplesmente preferia observar o que os outros estavam pintando. Cada céu azul, cada sol amarelo, cada flor vermelha. Mas algo o deixou curioso. Curioso a ponto de deixá-lo intrigado. Havia um lápis que ninguém usava. Era o maior, e geralmente ficava largado dentro da caixa. Só era notado quando sumia, e consequentemente surgia um espaço vazio entre os lápis das mais variadas cores. Para que, então, servia aquele lápis branco?

Tal questionamento voltava sempre à sua mente. Uma criança de três ou quatro anos não tem muito no que pensar. Logo é possível dizer que isso ocupava boa parte de seus pensamentos. E nesse dia, no parque com escorregadores, balanços, escadas e casinhas de madeira, essa pergunta voltou. Levantou-se do chão espalmando as calças, e saindo do lugar de onde observava as outras crianças, dirigiu-se ao seu avô perguntando-lhe o que era o “branco”, e porque ninguém usava o tal lápis.

-Oras, - disse-lhe o avô – o branco é uma cor. Mas não é só uma cor. Ela é todas as cores juntas. Vou te mostrar. Vê aquele montinho de fios brancos ali naquela árvore? Aquilo ali é a casa de um bichinho muito bonito, chamado bicho-da-seda. Ele quando é novo, é apenas uma lagarta sem cor. Quando já é mais velho, faz essa casa branca para ele. E, quando finalmente sai de lá, é todo colorido. Então todas as outras cores estão dentro do branco, entendeu? O azul do céu, o amarelo do sol e o vermelho da flor que seus amigos desenham na verdade estão todos no branco, são todos parte dele. É por isso que ninguém usa o branco. As outras cores sumiriam dentro do branco. É como se uma grande nuvem descesse bem em cima desse parquinho colorido. Você não o veria, não é?


O avô encerrou com uma grande gargalhada, mostrando os dentes escondidos pela barba manchada.


E então,


Segunda descoberta: o azul, o amarelo, o vermelho e o inesperado


O pequenino menino voltou ao seu lugar, sentando-se no chão e sujando suas calças. Não que isso importasse para uma criança. Ainda mais para ele. Estava distraído admirando as outras crianças, e pensando no que o avô lhe tinha dito.


É importante ressaltar que mesmo ele tendo fascínio pelo que via, não menosprezava aquilo que ouvia, ou sentia. Nunca foi assim. Nem mesmo daquela vez.


O baque surdo foi surpreendente. Não pelo som em si. Mas sim pelo fato de estar bem ao seu lado. A reação foi imediata, como se soubesse inconscientemente que existia ali, junto daquele som, algo muito mais interessante para se ver do que naquele parquinho cheio de crianças. E ele estava certo. Ele nunca havia visto olhos tão bonitos. Tão calmos, ou mesmo tão íntimos. Nunca mais veria olhos como aquele. O mais incrível é que para ele, a beleza não estava na cor dos olhos. Na realidade, é a única cor da qual nunca se lembrou. A única que perdeu a importância frente ao sentimento existente naqueles olhos. A lembrança seguinte reside em seu avô, tampando-lhe os olhos e levando-o para o mais longe possível. Ele ainda pode sentir o toque suave e ao mesmo tempo áspero das mãos do avô. A textura rugosa da pele já antiga, com suas veias já reveladas pela cobertura fina. Mas era tarde. Ele lembraria daquela cena como se ocorresse em sua frente toda vez que desejasse. E a levaria consigo para sempre. O céu azul celeste. O prédio amarelo-ovo por causa do sol. A calçada vermelho sangue por causa do corpo estendido a seus pés. Era um fim. Mas apenas o começo.


...


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