sábado, 27 de fevereiro de 2010

Tapete


A cerveja já praticamente fervia em minhas mãos. Estava ali há horas, apenas admirando a cena. Jogado no chão a apenas alguns passos de onde eu estava confortavelmente acomodado, aquele homem corpulento respirava seu próprio sangue espalhado pelo chão da sala. Respiraria, isto é, se ainda estivesse vivo. Apenas uma bala havia sido mais que o suficiente. Com uma boa mira, normalmente é o que basta, não importa o tamanho da pessoa. Destranquei a porta com aqueles grampos que a gente sempre vê em filme. Só não é tão fácil quanto parece. Felizmente não fiz barulho algum, e o peguei de surpresa pelas costas. Mais um trabalho bem feito. É, era trabalho. E não me venha com essa de "meus Deus, você é um assassino profissional!". Cara, tem gente que dá a bunda por dinheiro. Tem gente que é fiscal do imposto de renda e, pelo amor de Minha Nossa Senhora Aparecida dos Terreiros de Fundo de Quintal da Bahia, existem políticos! Me poupem, certo? Além do mais, já deu pra perceber que não sou lá muito religioso. Pra mim o inferno é aqui. Só fiquei meio com pena do cara. Ele tava lá, com a cervejinha dele na mão, ligando a TV pra assistir o time dele jogar. Foi realmente uma pena. Cerveja da boa, jogada fora daquele jeito. Imaginei que ele tivesse pelo menos mais uma, e adivinha só: a geladeira tava cheia! Muito bom. Fechei a porta e me servi. Mas o jogo tava um saco. Aí fiquei ali, olhando pra ele jogado num tapete com cara de que custou uma fortuna. Imaginando que diabos ele tinha feito pra alguém querer matar ele assim, na maior. Tinha cara de ser só mais um coitado, daqueles que sempre acaba ficando no lugar errado, na hora errada. Bom pra mim, era com esses que eu ganhava a vida.


Certo, certo. Estou mentindo pra vocês. Eu na verdade sou o melhor amigo desse cara. Bom, era né, afinal agora ele tá morto, não tem nem melhor nem pior amigo. Se bem que no final das contas, eu acabei sendo os dois. Eu não arrombei a porta, ele abriu pra mim. Ele falou pra eu ir pegar uma cerveja, já que a gente tinha combinado de encher a cara enquanto assistisse ao jogo. O problema é que ele era muito chato. Muita coisa mesmo, chega a ser inexplicável. Com futebol então, nem se fala. Aí o sacana ficou encarnando no meu time. Porra, sacanagem é plenamente compreensível. Aporrinhação não. Ele fez mais uma piadinha, e me deu no saco. Não pensei muito. Quebrei a minha garrafa, e enfiei no pescoço dele. Ótimo, silêncio. Peguei outra cerveja, e fui assistir ao jogo. O pior é que o time do filho da puta ainda ganhou. Sacana. Bom, menos mal que ele tá morto, senão aí sim, ele ia ficar insuportável. Gosto de pensar que fiz um bem pro mundo. Aí fiquei ali, olhando pros olhos dele, vidrados olhando pro nada. Pensei em jogar o tapete por cima, mas o tapete era caro. Depois do enterro ia tentar pegar pra mim, e manchado de sangue seria meio inútil.


Tudo bem, tudo bem, eu confesso. É mentira de novo. Eu sou um mentiroso compulsivo, invento histórias pra me divertir e tentar ganhar a simpatia dos outros. Não que dê muito certo, mas enfim. A verdade é que não era meu amigo, nem um desconhecido, não o matei com uma garrafa, e nem mesmo tinha jogo passando. Não que eu goste de futebol, de qualquer jeito. A casa era minha, e eu cheguei tarde como em qualquer outro dia. Meio puto, com fome, doido pra tomar um banho e descansar. Entrei em casa, fui deixando minhas coisas na mesinha perto da porta, e fui procurar minha esposa. A merda é que achei. Lá estava ela, jogada no chão da sala, com uma mancha escura em volta da cabeça, e um talho enorme do pescoço. E uma faca de cozinha em uma das mãos. Ainda bem que amolei as facas como ela pediu, ou então ainda ia ouvir: "Seu inútil, tentei me matar hoje de tarde e não consegui! Sabe por quê? Porque você não amolou as facas como eu pedi!". O pior nem foi isso, foi que ela ainda por cima conseguiu manchar a porra do tapete, cara! Devia ter algum bilhete suicida em algum lugar por ali, ou uma despedida escrita a batom no espelho do banheiro, mas não tava com saco praquilo naquela hora. Fui procurar alguma coisa pra comer, e achei uma panela de pressão no fogo. Filha da puta, ainda quis deixar a panela de pressão estourar, só pra eu ter que limpar. Como se já não bastasse todo aquele sangue na sala. Ela sempre reclamava que eu nunca ajudava. Bem, o feijão pegou um pouco no fundo, mas ainda estava comestível. Tinha arroz e carne da geladeira e, felizmente, ainda tinha umas três garrafas de uma daquelas cervejas importadas que eu adoro. Pulei pro sofá pra não pisar no sangue, e fui assistir um filme. Talvez resolvesse aquilo tudo na manhã seguinte.


Sabe, talvez casar tivesse sido uma boa. A menos que ela fosse uma filha da puta como essa mulher aí de cima. Se bem que provavelmente eu também não fosse um marido tão bom, já que ela se matou. Não parei pra pensar nisso. A questão é que eu sempre morei sozinho. Dei uma cagada de arranjar um emprego ótimo com apenas 20 anos, e pulei fora da casa dos meus pais. Vinte e cinco anos depois, algumas mulheres vieram e foram embora, e eu continuei aqui. De certo modo foi melhor assim, sou meio enjoado e gosto das coisas do meu jeito. Não tem muita gente que venha aqui em casa, até porque é meio longe e contramão do centro. E, ainda assim, cá estou eu, jogado na porra do chão e com um corte brutal na minha nuca. Pelo menos acho que estou, não sei. Não consigo ver nem ouvir nada, e a última coisa que senti foi um baque muito forte no pescoço, seguido do peso do meu corpo atingindo o chão. Tava com uma cerveja na mão sim, e lembro de ouvir a garrafa quebrar quando meu braço caiu por cima dela. Ótimo, pra completar devo estar com o braço todo cortado. Acho que o pior é não saber quem ou por que fez isso comigo, ou mesmo se eu ainda estou vivo ou não. Se eu não ouço nem vejo nada, provavelmente também não consigo falar nada, e estou simplesmente falando comigo mesmo dentro da minha própria cabeça. Meio solitário isso. Fico me perguntando se alguém vai me achar. Ou, se quando me acharem, ainda vou estar vivo. Ou se quem me achar não vai ficar morrendo de inveja, porque queria ter feito isso comigo mas nunca teve coragem. Não, já sei qual é o pior. O pior sou eu estar jogado no chão, provavelmente inconsciente, falando sozinho, ter quebrado a porra de uma garrafa de cerveja importada, não ter conseguido assistir a porcaria do jogo, e muito provavelmente estar sangrando em cima do maldito do tapete. Merda.


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Moleque - Final

Pedro já tinha tudo armado na cabeça. Ele não compartilhou tudo com Claudinho porque sabia que, se contasse, não ia conseguir o pó emprestado pra levantar a grana inicial. Ele ia vender só por algumas semanas, não muito mais que um mês, definitivamente menos que dois. Claudinho não ia deixar ele entrar na história pra depois pular fora. Podia dar merda, ele sabia, mas eles eram conhecidos de infância, depois ele via isso. Uma coisa de cada vez. A grana que juntasse, ia usar pra comprar algumas coisas pra vender no centro da cidade. Ia ser camelô, vender relógio, pilha, boneco falso ou refrigerante, mas pelo menos não ia correr o risco de ser morto a qualquer momento. Sem falar que não ia precisar ficar mais pedalando debaixo do sol o dia inteiro.



Desceu o bairro, e nas ladeiras ia encontrando com outros que, como ele agora, trabalhavam pro “Zé”. Aparentemente todos já sabiam da novidade, e lhe cumprimentavam quando passava. Um pouco antes de chegar no “ponto” onde deveria ficar, um dos moleques se juntou a ele. “O que foi?”, perguntou. “O Zé mandou te acompanhar. Só hoje, porque tu é novato.” Os dois passaram apenas algum tempo juntos. Em menos de 3 horas, 5 pacotinhos já tinham ido embora. Nunca tinha feito tanto dinheiro em tão pouco tempo. Resolveram ir embora, porque por duas vezes uma patrulha passou por eles e era questão de tempo até pararem ali. Antes de ir embora, o garoto que o acompanhava fez apenas um comentário, em tom de alerta: “Só lembra de uma coisa: esse dinheiro que tá aí não é teu, é do Zé. Espera pra receber a tua parte, depois gasta”.


Não que isso fosse ser um problema. A última coisa que queria era arrumar problemas, ainda mais que precisava estar na melhor situação possível com Claudinho, pra quando quisesse parar de vender. Quinta e sexta-feira passaram sem ele nem perceber. Tinha conseguido manter a mentira pra mãe, e enquanto ela acreditasse que estava entregando água, não teria muitos problemas em continuar vendendo pó. Sábado deixou avisado que ia jogar bola, e depois iria ver Joana, mas passou o dia no ponto. No domingo pela manhã, só faltavam 3 pacotinhos de cocaína pra vender. “É, tudo tá correndo bem”, pensou consigo mesmo. Ia ficar até o fim do dia, pra se desfazer logo do que restava da coca e ir pegar mais com Claudinho, mas viu uma patrulha passar algumas vezes pelas ruas ao lado, então achou melhor encerrar o expediente por ali.


- Pedro! – gritava uma voz pelo rádio.

- Eu.

- Pedro, aqui é o Zé. Corre em casa, que parece que tem alguma coisa errada com Joana.

- Valeu.


Subiu as ladeiras em tal velocidade que sequer via por onde passava, e ainda assim tinha a impressão de que lhe faltavam as pernas. Se tinha alguma coisa com Joana, provavelmente tinha alguma coisa com a criança. Nem de longe era uma cria planejada, mas não era por isso que não ia cuidar dela. Chegando em casa, viu a mãe cuidando da namorada, que descansava deitada na cama.


- O que houve?

- Ela sangrou. Ela tem que ir no hospital, não tem jeito. To só arrumando umas roupas pra levar. Me dá a sua mochila pra eu guardar as coisas.


Preocupado, entregou a bolsa sem pensar duas vezes.


- Pedro, QUE MERDA É ESSA? – dizia a mãe, segurando uma embalagem cheia de pó branco na mão. “Você por algum acaso é retardado?”, gritava. “Não sabe que essa porra só termina em morte? Ainda não viu amigo seu suficiente morrer por causa dessa porcaria não? Você tá comendo merda, por algum acaso?”, continuava.

- Mãe, não fode minha paciência. Depois a gente vê isso, agora a gente tem que se preocupar em levar a Joana na emergência.


Antes de sair, catou todo o dinheiro que tinha em casa, e seguiu com as duas pro hospital. Não que tenha adiantado muita coisa. Plena tarde de domingo, o hospital público mal tinha alguém na recepção. Deram entrada, mas quarenta minutos depois foram avisados que simplesmente não havia médico algum ali, e que o próximo só chegaria as três da manhã, e sequer era da especialidade necessária pra ajudá-los. Conseguiram pelo menos uma cadeira de rodas para deixar Joana descansando, e Pedro e sua mãe se afastaram pra conversar.


- Pedro, isso não vai dar certo. Eu já vi muito isso acontecer, se ela não receber cuidado logo, vai acabar perdendo a criança. Essa menina é igual você, completamente tapada, só foi perceber a gravidez com mais de três meses. Se ela parar a gravidez agora, vai ter que operar pra tirar.

- Não fala assim dela. Além do mais, mas tem muito o que a gente possa fazer...

Pedro parara de falar repentinamente. Tinha se lembrado do dinheiro que pegou antes de sair de casa. Tinha 340 reais na mão. Não era muito, mas tinha que ser o suficiente.

- Mãe, pega a Joana, eu vou chamar um táxi. Vamos no particular, é o jeito. O Santa Maria não é grande coisa, mas pelo menos vai ter médico. Sem falar que vai dar pra pagar.

- E posso saber de onde você vai tirar o dinheiro?

- Deixa que depois eu resolvo isso. Vai, anda logo.


Ir em outro hospital terminou por ser realmente a opção mais acertada. A criança que Joana carregava realmente corria riscos, mas com a medicação e repouso ficaria tudo bem. Sentado na beira da cama observando a mãe de eu filho dormir, outra preocupação tomava a cabeça de Pedro: onde diabos ia arranjar os 270 reais que gastou nessa correria toda. A merda tava feita, e se não tinha como levantar um valor desse antes, agora com certeza seria impossível. Depois de muito pensar, resolveu naquela noite mesmo ir explicar as coisas pra Claudinho. Juntou o que tinha restado, 70 reais mais três pacotinhos de coca, enfiou no bolso e subiu o bairro.


Pleno domingo, Claudinho terminava a noite em meio a uma roda de samba num boteco perto da própria casa, o que significava uma boa subida. Pedro enxergava as luzes amareladas iluminando as caras brilhantes de suor, em meio a bebidas e batuques. Chegou de fininho, e quando foi cumprimentar o “Zé”, disse que precisava conversar em particular. Desconfiado, o amigo deixou avisado que já voltava, e foram os dois pro fundo do boteco.


- Diz aí – interrogava Claudinho – qual foi?

- Aquela parada da Joana...

- Quê que tem? – perguntou uma Claudinho visivelmente irritado.

- Deu merda. – respondia Pedro, acuado.

- Que merda que deu? Anda, fala logo!

- A grana do pó. Tive que usar pra levar ela no médico. Só sobrou isso.

Pedro mostrava o dinheiro e os pacotinhos restantes.

- Cara, cê tá de sacanagem, num tá? Me diz que você tá de sacanagem!

- Não “véi”, é sério. Ela ia perder o guri, e...

- E, o quê? E o quê, ME DIZ? – o “Zé” mostrava agora que nem de longe era o amigo de longa data, e berrava enquanto estapeava fortemente a cara de Pedro. – Tu só pode tá de sacanagem comigo, cara! Aquela porra da tua namorada é uma baita duma puta, dá pra tudo quanto é moleque do bairro, e tu me faz uma merda dessa por um guri que se bobear nem é teu?

- Cara, não fala assim!

“Não fala assim?”, ironizava Claudinho antes de socar o nariz de Pedro, e deixá-lo sangrando.

- Mermão, eu te dei essa porra toda na confiança, e tu me dá um vacilo desse? Não sabe que eu também tenho compromisso com o cara que me fornece essa porcaria?


A gritaria era ouvida lá de fora, mas ninguém tinha coragem de interromper a cantoria. Os esporros do “Zé” tinham que ser respeitados, mas todos fingiam que nada acontecia. Prestar atenção no “Zé” era pedir pra ele prestar atenção em você, e não de um jeito bom.


- Só vou te dizer uma coisa: tu tem até amanhã, meio dia, pra estar com a grana inteira aqui na minha mão.

- Mas Claud...

- NÃO QUERO NEM SABER! Veio me pedir ajuda porque quis, otário. Agora te vira. Senão vou atrás de ti. Agora vaza!


Pedro saía com o nariz sangrando, e completamente desorientado. Sem saber o que fazer, correu na casa de cada conhecido seu, tentando juntar o que devia. O problema é que Claudinho já tinha mandado passar o recado, e quem ajudasse Pedro ia ter o mesmo destino dele. A maioria sequer abriu a porta. Outros falavam baixinho por detrás da porta, pedindo que fosse embora. Foi conseguir alguns trocados com alguns amigos no bairro vizinho, mas não deu nem pra começar. O jeito ia ser pular fora, e nunca mais dar as caras por ali até Claudinho ser morto, ou preso. De um jeito ou de outro, podia ser uma semana ou um ano.


Foi chegar em casa quase às sete da manhã, apenas pra ver a mãe desesperada, brigando e perguntando porque diabos ainda estava ali. Ele tentava explicar que tinha ido se despedir e que ainda tinha mais algumas horas antes de irem procurar por ele, então dava tempo de pelo menos juntar algumas coisas na mochila antes de sumir. Doce engano. O barulho de alguém socando a porta da frente era a dica que faltava pra Pedro entender que a chance que tinha tido de fugir foi depois de ter deixando Claudinho puto da vida no boteco, e não agora. A porta vinha abaixo, e vários moleques armados até os dentes só tiveram a chance de ver Pedro caindo pela janela.


- Ele tá na rua debaixo! – gritavam os garotos de metro e meio, que perseguiam Pedro armados como pra uma guerra.


Pedro corria desesperado. Sentiu vergonha de deixar a mãe sozinha com aqueles vagabundos na casa dela, mas se não tivesse feito isso, tava morto ali mesmo. Conseguia ouvir disparos que acertavam em cheio a parede exatamente no local onde ele estava um segundo atrás. Virou uma esquina, e percebeu logo que tinha cometido um grande erro. Descendo o cruzamento vinha o “Zé”, e ao vê-lo entendeu porque ninguém nunca disse nada daquele nome ridículo de cangaceiro: o “Bedegueba” trazia consigo uma peixeira enorme, enferrujada e suja com sangue que fazia questão de não limpar. “Caralho, o filho da puta ainda virou um sádico!” – pensava Pedro, enquanto virava pro lado oposto e continuava a correr.


Corria ladeira abaixo sem rumo, sem prumo, sem ideia do que fazer agora. Ele só corria, descalço e com a solina castigando sua cabeça raspada, tropeçava nos próprios pés percorrendo o calçamento mal feito do bairro antigo. Mas ele já deveria saber que não tinha como acabar bem. Tava na cara. Ele parou por um segundo pra pegar ar, e olhar por cima do ombro. Péssima ideia. Seu perseguidor vinha logo atrás, brandindo o facão enferrujado nas mãos.


Já tinha chegado no pé do bairro, e já não tinha mais descida pra ajudar na fuga. A esperança era que tivesse um ônibus ou qualquer coisa do tipo na avenida lá embaixo assim que chegasse, pelo menos tentaria despistar aquele tanto de moleque atrás dele. Os gritos do Zé eram de alguém que estava achando aquilo tudo extremamente divertido. Talvez ele já soubesse que isso ia acontecer, e resolveu ajudar Pedro só pra ter uma justificativa pra matar alguém mais tarde. As casas baixas deixavam passar a luz do sol, bem na direção da vista de todos eles, cegando Pedro no exato momento em que pisava em falso, e dava de cara com algo enorme e estranhamente macio.


Caído na rua e de costas pro sol, Pedro percebeu que tinha acertado em cheio a cabeça de um cavalo que no mínimo deveria estar perdido por ali. Começava a tentar se levantar pra continuar a fugir, quando notou que já era tarde demais: Claudinho ainda corria ao seu encontro, mas a única coisa que os separava era um cavalo extremamente agitado. Com os olhos vidrados no pescoço de Pedro e um facão sedento por sangue, não pensou na besteira que fez tentando empurrar o cavalo para tirá-lo da frente de Pedro.


Pedro mantinha os olhos fechados enquanto esperava o corte cego do facão em seu pescoço, e apenas ouviu o barulho do metal atingindo no chão, junto com o que parecia um saco de batatas tombando. Um silêncio absurdo tomou conta da situação, e Pedro espiava aos poucos o que tinha acontecido. Claudinho estava no chão, quase aos seus pés, mas agora com um buraco enorme na testa. Quando empurrou o cavalo, uma das patas foi parar direto em sua cabeça, transformando-o no mínimo em um vegetal.


Uma multidão se amontoava, tentando ver o acontecido.


O gerente do tráfico do bairro estava morto.


Era mais uma guerra esperando pra estourar, e ver quem assumiria seu lugar.


Nada incomum pra gente daquele bairro.


E de Pedro já não se via nem a sombra.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Moleque - Parte 1

O moleque corria ladeira abaixo sem rumo, sem prumo, sem ideia do que fazer agora. Ele só corria, descalço e com a solina castigando sua cabeça raspada, tropeçava nos próprios pés percorrendo o calçamento mal feito do bairro antigo. Mas ele já deveria saber que não tinha como acabar bem. Tava na cara.


Ele parou por um segundo pra pegar ar, e olhar por cima do ombro. Péssima ideia. Seu perseguidor vinha logo atrás, brandindo um facão enferrujado nas mãos.


Duas semanas antes, ficou sabendo que ia ser pai. A história já era lugar-comum no bairro, onde a maioria das meninas já começava a parir aos 13, com os pais não muito mais velhos. Ele pelo menos tinha chegado aos 15 antes de dar tal sorte. Foi ter com a mãe, porque do pai já não sabia o destino havia bem uma dúzia de anos. Ouviu a ralhação que tantas vezes viu destinada a seus amigos do bairro, acompanhada da boa e velha sentença: “Pois agora vai trabalhar, que tem filho pra criar. E anda logo, que é pra pagar um médico decente pra cuidar de Joana enquanto tá com o filho no ventre.”


E assim foi feito. Correu atrás, mexeu daqui e de lá, e no final arranjou um bico de entregador de gelo. Foi de noite avisar Joana que tava empregado, e que ia ficar tudo bem. Ela continuava de garçonete no botequim no pé do bairro até quando desse, e ele ia fazendo a vida como fosse. Que ela não se preocupasse. No dia seguinte lá estava ele, pedalando aquela caçamba caindo aos pedaços pelos botecos da região levando gelo. Não passou do segundo. Chegou e viu meia dúzia de amigos dos tempos de campinho tomando umas cervejas na porta do bar. Não foi culpa dele, por assim dizer. Eles que o viram saindo. Chamaram pra um copo, ele negou.


Explicou a história, e disse que tava cheio de coisa pra fazer. Eles insistiram. Mas que diabos, um copo não ia fazer mal. Um copo não ia, mas uma garrafa e meia depois, ele largava os amigos discutindo bobagens na mesa e voltava pro triciclo só pra ver que os sacos de gelo tinham derretido. Tava na merda. Voltou correndo pro depósito, não a tempo de evitar um baita esporro, e o desconto de uma parte do comissionado do dia. Deveria tirar uns 20 reais no fim do expediente, mas por causa da brincadeira logo no começo do dia, mal arrancou uma nota de 10 da mão calejada do patrão.


O caminho pra casa foi triste. Ele não morava na parte alta do bairro, mas cansado do jeito que estava, até parecia a montanha mais alta do mundo. Sentou à mesa mudo do mesmo jeito que cruzara a porta de casa. Comeu o prato de feijão, arroz, ovo e farinha sem fazer um único som além da colher batendo no fundo do prato. Bateu na cama, e dormiu. O dia seguinte se repetiu praticamente da mesma maneira, com duas pequenas diferenças: a primeira, não repetiu a besteira de relaxar do trabalho por um momento sequer; a segunda, que não conseguiu dormir. Ele imaginava como seria difícil dar uma vida decente pra criança, pra mulher e pra mãe dele ganhando aquela miséria por dia. Passara a infância toda nessa situação, onde dificilmente o dinheiro ia pra outro lugar que não pra dentro do prato. Isso, claro, quando se tinha algum dinheiro. Ele não queria isso pra um filho. Imaginava que se conseguisse tirar pelo menos um pouco mais, uns 40 ou 50 reais por dia, já ia melhorar sua situação consideravelmente. Não ia lhe tirar da pobreza, não com aquele tanto de boca pra alimentar. Mas pelo menos teria um pouco de tranquilidade. Com o dinheiro, pelo menos. Porque ele sabia a única maneira que alguém como ele, praticamente sem estudo, poderia arranjar tal valor.


Mas ele tinha um plano.


Saiu de manhã cedo como se fosse pro trabalho. Se despediu da mãe, e ganhou a rua. Mas ele não desceu o bairro pra ir pro depósito. Ele subiu. E lá em cima, foi ter com o diabo.


Chamavam o cara de “Zé Bedegueba”. Deixaram ele escolher, deu nisso. Mas o nome mesmo era Cláudio. Claudinho, pros mais íntimos. Eram amigos de infância, então a conversa corria da maneira mais natural.


- O que é que tu quer?, dizia um garoto de uns 11 anos, no máximo, que guardava a passagem.

- Vim ter com Claudinho.


O garoto sorriu. Todos no bairro falavam no máximo “Zé”. Ele sabia que, pra ter coragem de pedir pra falar com o “Claudinho”, tinha que ser da família, muito amigo, ou muito estúpido. “Tem um cara aqui querendo papo com Claudinho”, ele dizia no rádio. “Manda subir”, foi a resposta curta e grossa. O moleque fez sinal com a cabeça, e ele entendeu.


Claudinho devia ter uns 19 ou 20 anos. Tinha dado sorte de sobreviver até agora, e acabou chegando no topo daquela cadeia alimentar. Controlava o tráfico na metade do bairro, e só tinha que dar satisfações ao chefe da facção, que gerenciava quase a cidade inteira.


- Porra, Pedro! - Claudinho dava um salto do sofá ainda com um copo de leite na mão e um pão na outra.

- Fala, Claudinho.

- Isso é jeito de chegar, do nada? Anda sumidão e me aparece assim de repente?


Claudinho deixava o pão e o copo em cima da mesa, e engolia rapidamente o pão molhado que tinha na boca.


- E desde quando eu tenho que avisar? Até parece! – respondia um Pedro quase sorridente.

- Tá certo... Mas me diz, o que te traz aqui? Que eu lembre, não te vejo há quase um ano.


Os dois se conheciam de infância. Claudinho ensinou de tudo a Pedro, de soltar pipa a levar uma mulher pra cama. Mas Claudinho decidiu por outro caminho, e largou Pedro sozinho nos campinhos de várzea pra trabalhar transportando pó.


- Quero vender.

Claudinho sorria.

- Vender? Se eu te deixar vender, tua mãe me mata.

- Ela não vai saber. Ela acha que to trabalhando num depósito lá no pé do bairro.

- Muito bem... só me explica porque.


Pedro contava a história.


Ainda enquanto ouvia Pedro falar, Claudinho se dirigia a um armário de ferro trancado à chave. Abriu, e de lá tirou duas dezenas de pacotinhos e enfiou numa mochila velha.


- Pedro, presta bastante atenção. Cada pacotinho desse vale 20 pratas. Vou te dar na confiança, mas é melhor você não vacilar no dia que tiver que me devolver essa porra. Hoje é quarta, vou te dar até terça. Final de semana o movimento é maior, você não deve ter problema pra se desfazer de tudo. Claro que isso não vai te render muito, mas se tudo der certo, semana que vem a gente aumenta tua participação.

- Pode deixar.

- Agora cai fora, que tenho coisa pra fazer. Anda, vai me deixar orgulhoso, vai.


Claudinho apenas observou enquanto Pedro desceu as escadas, pensando consigo mesmo que, uma hora ou outra, todo mundo cai naquela vida.