sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Cigarro mata

Minha avó morreu por causa de cigarro. A velha, tadinha, de tão velha já nem conseguia andar direito. Só fazia questão de sair de casa pra ir no mercado, e comprar cigarros. Toda manhã, chegava em casa com as mesmas coisas na sacola: um tomate, uma cebola, dois pães e dois maços de cigarro. Um pão para o café, meia cebola pra cozinhar, mais meia cebola e o tomate pra salada, e mais um pão pro lanche. E a porra de dois maços de cigarro pro dia todo. Mas graças a Deus ela não tava doente não. Um dia ela tava voltando pra casa, e lembrou do cigarro. Era esquecida, a coitada. Lembrou no meio da rua, e quando ia dar a volta pra ir no mercado de novo, o diabo de um caminhão passou por cima dela. Ela muito pequena, o motorista provavelmente com sono, deu no que deu. Morta por causa de cigarro.


Eu pedia um cigarro. Um só. Tava na merda, se comprasse o maço não chegava em casa antes das 4 da manhã. A gorda sentada no caixa olhava pra minha cara segurando meu Lucky Strike naquela mão sebosa, provavelmente pensando “o que esse filho da puta veio fazer logo no meu caixa, bem na hora que eu tava fechando, e pedindo a porra de um cigarro só?”. Minha avó fumava Marlboro, mas nunca fui com a cara daquele caubói. De peão, já basta eu. E nada de achar a porra da moeda no meu bolso. Minhas mãos passeavam pelos bolsos da minha calça buscando por aquela bendita moeda de cinquenta centavos que achei na rua. Com a ponta dos dedos eu sentia o papel amassado do bilhete do trem, uma carteira com dois reais dentro e um santinho com a figura de São Roque, protetor dos cães. Meu pai achou engraçado, o sacana. A moeda finalmente aparecia, e eu deixava pra trás aquela mulher enorme e visivelmente destroçada por uma vida de merda sob as luzes estéreis da lojinha.


A lojinha ficava bem no começo da avenida, e eu ainda tinha que andar até o final. Isso pra pegar o ônibus de meia noite e quinze, o último que passava naquele ponto. Pra conseguir pegar o trem que sai à uma. Depois, só o corujão das duas e meia. Pra completar, não sabia sequer que horas eram. Meu incrível relógio de nove pratas me deixou na mão desde o almoço. O chefe viu que passei do horário, mas o viado nem avisou. Depois veio dizer que achou que eu estava fazendo um bom trabalho, dando o sangue pela firma, essas coisas. Tá bom então. Cheguei no ponto, o relógio da rua marcava 00:05. Dez minutos, nada. Vinte, nada. Um mendigo passa ouvindo um radinho de pilha, e consigo pegar o que o locutor diz: “boa noite, são agora quinze pra uma”. Merda, vou ter que andar. Boa noite não sei pra quem. A bituca de cigarro jazia babada em algum lugar da avenida. Devia ter comprado o maço inteiro.


Meus pés já ardiam depois de um dia inteiro de trabalho e de ter caminhado feito um condenado, e eu ainda tinha mais de uma hora de sola até a estação. Sempre me pergunto o porquê da estação ser tão longe. Mas sempre lembro que gente com dinheiro não usa trem, e também não quer ter que ver gente pobre por perto. Procurei na mochila surrada um chiclete, ou algo do tipo, mas a única coisa que sorri pra mim é uma camisa fedorenta e uma quentinha abafada com o que sobrou do PF do bar onde almoço todo santo dia. E nem podia reclamar, afinal a gororoba dava pra almoço e janta.


A noite era silenciosa. Uma ou outra farmácia aberta, com o atendente dormindo sentado numa cadeira de plástico por trás do vidro à prova de balas do guichê 24 horas. Um ou outro bar ainda abrigava um punhado de bêbados barulhentos. Um ou outro carro passava à toda. Nem mesmo meus sapatos surrados faziam som algum.


Por mais que eu tivesse chegado ao ponto atrasado, tentava me consolar pensando que pelo menos chegaria cedo à estação, e não teria que enfrentar a viagem em pé. Não adiantava muito. Eu me distraía pensando em absolutamente nada, apenas observando exaustivamente a maneira como meus pés conseguiam se colocar um na frente do outro.


“Tem fogo”, falou a voz fina vinda de uns degraus na entrada de um grande prédio de negócios. “Tenho”, pensei comigo, “mas se eu pedir um cigarro em troca do fogo, essa vaca vai dizer que só tem esse”. A voz nem era tão irritante. Era voz de mulher, normal, até bem simpática, pra dizer a verdade. Nada daqueles “sedosa, melodiosa” de filme. Pobre não tem voz melodiosa, e “sedoso” a gente sente com a mão, não com o ouvido. “Vai se fuder”, respondo. Adoro dizer isso pra estranhos. Não sei porquê, é tara.


“Tão bonito, mas tão grosso.”


Eu juro que esperava um “babaca”. Eu estava torcendo por “babaca”. Merda, ela devia ter dito “babaca”.


Eu parei. Um carro passou e a iluminou por um segundo. Era uma puta, provavelmente num dia de movimento fraco. Meia arrastão, shortinho, top, cabelão e maquiagem. Gostosa, até. Não era das mais oferecidas, daquelas que ficam só de calcinha e peito de fora, mas também não era das mais comportadas. Mas também, nunca vi puta de rua comportada.


“Se é só pra olhar, tira uma foto e leva pra casa, filhinho. Tem fogo ou não tem?”


Eu sei que devia ir embora. Mulher assim é problema. Mas porra, ela deve ter mais de um cigarro. Ah, que se foda. Já to atrasado mesmo. Só isso não vai me fazer perder o trem.


“Tenho”, respondo. “Mas só se tu tiver mais de um cigarro.”

“Feito”. Ela tirava meio maço de cigarro da bolsinha minúscula e, cacete, adivinha só? Lucky! Cagada fenomenal.

“Valeu”, falei depois de acender o cigarro dela e começar a tomar meu rumo.

“Peraí.”

-Peraí o quê?

- ‘Cê’ tá indo pra onde?

- Do que te interessa?

- É que o movimento tá fraco, e tenho que andar um pedação até a estação. Pensei se tu num tava indo pra lá.


“Furada, furada”, “vai dar merda, vai dar merda”, “Foge Bino, é cilada!”. Tudo que vinha na minha cabeça me dizia pra pular fora, dar uma desculpa esfarrapada, pegar a primeira rua pra dentro do quarteirão, e voltar pra avenida mais lá na frente.


- Bora.


Agora EU me chamava de babaca. Ela levantou num pulo, prendeu o cabelo, colocou uma blusa e tirou os sapatos de salto e as meias, e ficou com eles na mão. Ficou até parecendo gente.


- Melhor na mão que no pé. Essa porcaria é só pro ponto.


Eu curtia meu cigarro quieto. Ela até matraqueou entre uma baforada e outra, mas desistiu depois que percebeu que estava sendo ignorada. Carros, agora, só o caminhão de lixo. As grades já tinham coberto as portas de todo e qualquer bar da região. Era como um filme muito ruim daqueles de monstro, a cidade completamente deserta. Éramos apenas nós dois, e felizmente não faltava mais que uns quinze ou vinte minutos de caminhada.


Mas tinha que acontecer alguma coisa. Ah, tinha. Algo de errado tinha que ter com essa puta, tava tudo indo bem demais. Nada vem de graça assim. Nem cigarro.


Um carro passou voando pela avenida. Veio de trás da gente, parecia que ia levantar voo. Mas nem foi muito longe. Quem quer que estivesse dirigindo mal passou uns 10 metros da gente, e pesou o pé no freio. Os pneus gritaram mais uns cinco metros. A luz de ré deveria ter me avisado. Diabos, aos menos aquele som escroto da marcha reversa devia ter dado uma dica. Mas não, eu tava distraído demais saboreando o finalzinho do meu cigarro. Essa merda ainda vai me matar.


Saíram dois caras, e o que veio pela calçada não esperou nem eu fazer cara de espanto. Veio logo com um cruzado bem no osso da bochecha. Só fiz cair no chão e ouvir os dois falando meio embolado “E esse cara?”, “Leva”, pra depois desmaiar. Acordei em um cômodo imundo, cheio de tralha. E não sabia sequer quem ou o que eram aqueles caras. Podiam ser simples ladrões, ou até traficantes e assassinos. Tinha de tudo ali: armas, pacotes de cigarro falsificado (eu pelo menos nunca fumei um maço de ‘Ducky Strike’), e uns plásticos cheios do que poderia parecer cocaína. “Bom”, pensei eu, “se eles são ladrões e traficantes, provavelmente são assassinos também”. Não que esse pensamento tenha ajudado em alguma coisa. Percebi que tinha sido jogado num colchão meio nojento em um dos cantos da saleta, e que deitada para o outro lado tava a guria que tava me acompanhando. “Viu, foi se meter com puta, isso que dá”. Mal completei o pensamento, um negão que saía de uma porta à minha direita falava a mesma coisa. “Muito bom, agora virou sabedoria popular”. Logo entrou um velho por uma porta na esquerda, com cara de quem mandava nas coisas.


- Como é, Jorge, vai apagar o cara ou não vai? A gente tem coisa pra fazer! – Disse o velho.

- Foi mal, fui dar uma cagada. Tava com urubu bicando, chefe! – Esse foi o negão.

- Tá bom, tá bom. Mas vamos logo com isso, que o carro daqui a pouco tá voltando.

- Beleza. Faca ou bala? – Obviamente o negão não tava perguntando isso pra mim.

“Quer saber?”, disse o velho com voz de quem tava de saco cheio. “Bora brincar. Segura ele aí, vai levar uns tapas”, ordenou o velho.


O tal do Jorge, vulgo “negão”, veio empurrando uma mesa com umas cadeiras que bloqueavam o caminho dele pro lado, e me levantou por trás. Me toquei que tava com as mãos amarradas,então não tinha muito o que fazer além de espernear. O velhote quis vir de frente, bem achando que porque eu tava ainda meio grogue, ia ser moleza. Mas filhão, se você vem de um lugar onde você precisa pegar um trem E um ônibus pra ir trabalhar, você provavelmente aprendeu uma ou duas coisas pelo caminho. Ele ia ter que cortar fora as minhas pernas antes de acertar a minha cara. “Na cara não”, minha mãe sempre dizia. Pior que ela falava isso me batendo na cara. Tinha o senso de humor igual do meu pai.


O velhote veio pra cima com as mangas arriadas, mas deu mole e meti o pé no peito dele. Ele ralhou com o negão, e mandou me segurar direito. Repetimos a ceninha umas três vezes, até que ele se emputeceu. “Quer saber? Agora vai no ferro!“ disse, enquanto puxava a arma do cinto. Cara, só pude ver a merda que ia dar. Só imaginava a nota de rodapé nos jornais de bairro do dia seguinte: “presunto encontrado com bala na testa dentro de valão”. Não era o melhor jeito de morrer. Definitivamente não era. Mas o velhote errou feio. Em vez de atirar de onde tava, veio pra cima de mim com a arma na mão. Dei um chute na cadeira entre nós dois que foi dar bem na cara dele, fazendo ele errar o tiro. Sem um pé no chão, acabei escorregando, a bala foi atingir o nariz do negão. Já não era muito bonito, o coitado.


O Jorge agora não passava de um grande monte de carne jogada no chão, e eu em cima dele. Amarrado. E com um velho psicopata querendo me transformar em peneira. Muito bom isso. Pra minha imensa sorte, o velho mais parecia uma tartaruga. Levou um ano pra tentar se levantar, o que me deu a chance de esticar um pouco a perna e socar com vontade a cadeira na cara dele. Senti algo rígido nas minhas mãos e, juro por Deus, torci pra que fosse qualquer coisa menos o que eu tava pensando. Mas tava frio. Graças a Deus, pensei. Eu não ia ficar imaginando o que ia acontecer se o coroa conseguisse ao menos se dar conta do que tinha acontecido. Ajeitei a arma que encontrei no chão entre as minhas mãos amarradas, virei de lado e disparei. Não quis nem ver. Quando abri os olhos, só tinha uma parede toda furada, e o velhote com uma bala no pescoço.


Não sei por quanto tempo fiquei ali parado, com o olhar vidrado naquela cena. Eu tinha me arrastado pro outro lado da sala, e congelei. Esperava que alguém surgisse lá de fora, e desse cabo de mim de uma vez, mas nada acontecia. Tentava entender o que tinha acontecido. Provavelmente tinham algo pra resolver com a garota, e entrei de gaiato. Não fazia ideia de que diabos aconteceu com ela na confusão, mas honestamente não ligo a mínima. Lembrei que tinha mais um cara, o cara do carro, e dei um pulo ainda com as mãos amarradas procurando algo pra me livrar da fita que me prendia os punhos. Tinha uma na cintura no Jorge, e me soltei. Sinceramente, depois disso tudo fiquei me sentindo meio como aquelas agentes secretos que se vê nos filmes. A diferença é que eu era pobre, ferrado, e não tinha absolutamente motivo nenhum pra estar ali. Encontrei por acaso minha bolsa do lado na porta. “Ah, que se dane”, pensei. Dois pacotes de cigarro e mais uns tantos de coca foram meu pagamento por essa confusão toda. Foda-se se eram “Ducky Strike”, pelo menos eram de graça. Felizmente a porta dava pra rua, e ao abrir já conseguia ver o dia nascendo. Ri comigo mesmo, e não resisti. Dei uma olhada pra dentro daquele lugar podre e perguntei pra ninguém, antes de pular fora de vez:


- Nenhum de vocês por acaso sabe pra que lado fica a estação de trem, sabe?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Minha doce bossa nova

Já há algum tempo que esta era a minha rotina. Mas não uma rotina ruim, porque eu adorava. Tinha se tornado mais um hábito. Um dia, por acaso, passei por ali procurando uma lanchonete, ou algo do tipo que não me recordo agora. Agora, assim que terminavam as aulas, eu ia direto para aquela praça a apenas duas ruas de casa. Deitava em um banco aos pés de uma enorme mangueira e, fazendo com minha mochila um rude travesseiro, ficava ali por horas, até ter que ir embora. Mas havia um motivo pra isso. A poucos metros dali, todos os dias, no mesmo horário, um senhor com uns poucos cabelos brancos e um enorme bigode colocava para tocar umas músicas incríveis, que só depois fui saber que eram todas os maiores clássicos da bossa nova. Eu sempre o via colocar o primeiro disco na vitrola, pra depois aconchegar-se numa enorme poltrona perto na janela. Ele lá, e eu aqui. Nunca nos falamos.

Eu tinha lá meus 14 ou 15 anos, e nunca tinha ouvido aquilo antes. Era completamente novo pra mim, mas aquele ritmozinho que eu achava engraçado a princípio já começava a fazer sentido nos meus ouvidos. Tanto que me apaixonei. Comprei alguns CD’s e um violão usado, mas nada substituía as horas passadas embaixo daquela mangueira ouvindo o som gostoso da agulha arranhando um disco antigo de vinil.

Isso foi logo no começo do ano. Vieram as férias de junho e julho, e fui com minha família para a casa de parentes no sul do país. Até tentei levar meus CD’s, mas minha mãe disse que aquilo era peso inútil na bagagem, e tirou tudo da minha mala. Eles ficaram lá, abandonados em cima da minha cama como amigos que se deixa pra trás. Não morri por causa disso, apesar de estar sempre morrendo de vontade de ouvir alguma coisa. Aproveitei as férias o quanto pude, e voltamos no dia anterior ao início da aulas.

Não dei a mínima pro que os professores falavam. Nem eu nem ninguém, mas tudo que eu queria era sair logo dali. O sinal do último horário foi como um grito de liberdade pra todos nós. Em meio a conversas, brincadeiras e bagunças, me desvencilhei daquela confusão e segui, sabendo que a música já teria começado, para meu banco de pedra e minha bossa nova.

Passava pela minha cabeça que talvez aquele senhor tivesse morrido, se mudado, ou os vizinhos tivessem reclamado e ele tivesse parado de colocar a música tão alta, mas eu realmente não esperava pelo que aconteceu. Caminhei distraído pela praça, e só percebi quando estava quase aos pés da árvore, perto demais pra disfarçar. Tinha alguém no meu banco. Não só alguém, mas uma menina. Uma menina linda. Uma pele branquíssima, contrastando com enormes mechas de cabelo negro como carvão que quase lhe passavam da cintura. Lábios finos e rosados, junto de olhos pequenos e sobrancelhas bem marcadas davam a ela uma expressão doce, mas firme. Seu corpo revelava que, pro meu engano, ela já começara a deixar de ser uma menina já há algum tempo. Seu pescoço fino terminava por mostrar um colo com algumas sardas, junto de pequenos mas proeminentes seios que formavam dois belos volumes sob a camiseta justa, a qual exibia ainda uma cinturinha muito bem marcada. Vestia ainda uma bermuda bem curtinha, deixando a mostra a pele alva de suas pernas bem formadas. Oras, eu era um garoto de 15 anos, pervertido como qualquer outro. Lógico que eu ia reparar nisso tudo.

“Oi?”, ela começou dizendo, provavelmente depois de me perceber ali com cara de quem tá na lua.

“Oi.”

Silêncio

- Tudo bem? - insistia ela.

“Tudo.”

Mais silêncio.

- Você tá no meu banco.

- Não vi seu nome.

- Não é meu, meu. Mas é meu.

A expressão de confusão no rosto dela foi o máximo.

- É que todo dia eu fico nesse banco.

- To aqui há duas semanas e nunca vi ninguém.

- Tava de férias.

- Ué, tavam te pagando pra tomar conta do banco? Quer dizer que estou perdendo dinheiro, então?

Agora era eu quem estava confuso.

- Vai, eu deixo você ficar ai no cantinho - dizia, enquanto recolhia um pouco as pernas.

Birrento, sentei no chão e coloquei a mochila no espaço que ela tinha me dado, usando como apoio. Ela riu. Com o passar da músicas, acabamos conversando. Ela também estava ali pela música, adorava bossa nova. Disse que morava por perto, mas nunca me disse exatamente onde. Vai ver tinha medo que eu fosse algum maníaco ou coisa assim. Ríamos sempre que falávamos disso. Era um ano mais velha que eu, e tinha se mudado durante as férias. Estudava em um outro colégio não muito longe dali, e isso era basicamente tudo que eu sabia dela. Ah, e se chamava Daniela. Dani, depois de alguns dias.

Pois aconteceu então de eu e Dani nos encontrarmos ali quase que diariamente. Ela era muito calma, o que mais tarde fui entender que era na verdade uma precoce maturidade. Enquanto eu não me continha em mim. Falava pelos cotovelos, e felizmente ela achava graça nas minhas infantilidades. Ela me falava de coisas mais sérias, me contava de filmes, música, teatro, enquanto eu a olhava com cara de quem havia descoberto a cura pra alguma doença gravíssima. Às vezes por causa do que ela me dizia, outras por ue ficava deslumbrado com seus pequenos detalhes, como o jeito que tirava a franja do rosto, como coçava a bochecha quando ficava em dúvida, como enrolava as pontinhas do cabelo entre os dedos quando estava envergonhada...

Ela me ensinou a dançar. Dançávamos pelo menos uma música, todas as tardes. Eu tentei ensiná-la a fazer um Lá no violão, mas ela me tirou o instrumento e começou a dedilhar a música que tocava pela janela. Ela me ensinou bossa nova, os artistas, as músicas, as histórias. Ela era mais que eu em tudo, e não entendia como ela tinha paciência de ficar ali comigo. Um dia, enquanto ouvíamos Dick Farney, demos nosso primeiro beijo. Não foi o primeiro pra mim, e muito menos pra ela, mas valeu como se fosse. A partir de então, nos tornamos inseparáveis enquanto aquelas poucas horas durassem. Engraçado que era apenas naqueles poucos momentos, mas eu não me importava. Ali eu tinha ela só pra mim. Acabamos dando um jeito dos dois caberem no banco. Muitas vezes eu deitava em seu colo, outras tantas o contrário. Em dias de chuva nos encolhíamos embaixo na mangueira, mas tantas foram as ocasiões em que mesmo sem chuva, ela se encolhia para que eu abraçasse por inteiro.

Fomos felizes, muito felizes. Mas nem tudo dura pra sempre. Aquela situação já corria havia bem uns 3 meses, até o dia em que ela não apareceu. Tudo bem, de vez em quando ela não aparecia mesmo. Eu imaginava que ela estivesse com pessoas da idade dela, ou tivesse saído pra algum lugar pra se divertir. Coisas que não dava pra fazer comigo. Mas já era o terceiro dia que ela não aparecia. Não sabia onde procurá-la, pois não tinha seu endereço. Também não perguntei seu telefone. Fiquei tão encantado com nosso mundinho, que não me importei muito com esses detalhes. Mais de uma semana havia se passado. Estranhei que alguns dias depois dela sumir, o velho senhor parou de colocar as músicas. Imaginei mil coisas, mas decidi entender que ela tinha se entediado com aquelas nossas bobagenszinhas. Fiquei triste, como toda criança quando perde seu primeiro grande amor. Deixei de ir até a praça, joguei meu violão pra cima do armário, enfiei meus CD’s num saco e joguei embaixo da cama. Se passaram três semanas até eu “superar” aquela história inteira. Em um dia nublado, saí da aula e resolvi dar uma passada no meu velho banco. Eu sentia falta dela, mas a saudade da bossa era maior ainda. Torcia que aquele velho senhor, meu companheiro solitário das tardes de música tivesse voltado a tocar os antigos discos.

Sentado no banco via os minutos passarem, e nada da música sair por aquela janela. Ela tinha ido embora, e levou minha bossa junto com ela. Me perdi em pensamentos e lembranças, hora de saudades, hora de raiva, e não vi o dia acabar. Em silêncio, acordei pra mim já com a noite alta, com uma pesada mão apertando meu ombro.

- Rapaz, – Dizia o velho senhor, quebrando um silêncio de meses entre nós dois – imagino que isto seja pra você.

Ele me entregou um pacotinho de folhas dobradas, e voltou pra dentro de casa. Reconheci o perfume da Dani nas folhas, e corri pra ler o que estava escrito. Quisera eu nunca ter recebido aquela carta.

Ali estava a história toda. Tudo que eu nunca soube sobre ela, caiu na minha cabeça como um bloco de concreto. Ela não se mudou de graça. Ele veio para a cidade porque aqui existia, na época, um dos melhores centros de nefrologia do país. Ela tinha uma doença gravíssima nos rins, e precisava de hemodiálise pelo menos 3 vezes por semana. Era nesses dias que nós não nos víamos durante a semana. Ela estava na fila para transplante, já que nenhum parente dela tinha se mostrado compatível. Aquele senhor era avô dela, por isso fora ele que me entregara a carta. Ela dizia que ficar ali fora era o máximo que ela podia fazer, além de ir à aula, e que estar comigo tinha sido a melhor coisa que poderia ter acontecido, pois eu lhe trazia um pouco à vida novamente, já que eu era o único que não sabia da sua situação, e por isso não tinha pudores com ela. No final da carta, ela contava que no dia seguinte iria finalmente ser submetida à cirurgia, mas que era uma operação muito delicada, e não sabia se iria resistir. Em todo caso, ela queria que eu soubesse que, ainda que eu fosse mais novo, na minha inocência eu havia feito dela a garota mais feliz desse mundo, e que mesmo em sua curta vida, sabia que eu havia sido o amor que ela queria pra vida inteira. Igualzinho às músicas que ouvíamos todos os dias.

A carta datava de um dia antes de quando eu percebi que ela tinha sumido. Isso só podia significar que nós nunca mais dividiríamos aquele banco de praça, enquanto nos perdíamos nas notas daquelas músicas incríveis.

Hoje, 20 anos depois, algumas das casas em volta da praça foram destruídas, e construíram um playground no lugar. De vez em quando eu volto lá com a minha Dani e, enquanto ela brinca com as outras crianças, me encolho naquele banco de pedra embaixo de uma velha mangueira enquanto ouço, entre memórias, a minha doce bossa nova.