A cerveja já praticamente fervia em minhas mãos. Estava ali há horas, apenas admirando a cena. Jogado no chão a apenas alguns passos de onde eu estava confortavelmente acomodado, aquele homem corpulento respirava seu próprio sangue espalhado pelo chão da sala. Respiraria, isto é, se ainda estivesse vivo. Apenas uma bala havia sido mais que o suficiente. Com uma boa mira, normalmente é o que basta, não importa o tamanho da pessoa. Destranquei a porta com aqueles grampos que a gente sempre vê em filme. Só não é tão fácil quanto parece. Felizmente não fiz barulho algum, e o peguei de surpresa pelas costas. Mais um trabalho bem feito. É, era trabalho. E não me venha com essa de "meus Deus, você é um assassino profissional!". Cara, tem gente que dá a bunda por dinheiro. Tem gente que é fiscal do imposto de renda e, pelo amor de Minha Nossa Senhora Aparecida dos Terreiros de Fundo de Quintal da Bahia, existem políticos! Me poupem, certo? Além do mais, já deu pra perceber que não sou lá muito religioso. Pra mim o inferno é aqui. Só fiquei meio com pena do cara. Ele tava lá, com a cervejinha dele na mão, ligando a TV pra assistir o time dele jogar. Foi realmente uma pena. Cerveja da boa, jogada fora daquele jeito. Imaginei que ele tivesse pelo menos mais uma, e adivinha só: a geladeira tava cheia! Muito bom. Fechei a porta e me servi. Mas o jogo tava um saco. Aí fiquei ali, olhando pra ele jogado num tapete com cara de que custou uma fortuna. Imaginando que diabos ele tinha feito pra alguém querer matar ele assim, na maior. Tinha cara de ser só mais um coitado, daqueles que sempre acaba ficando no lugar errado, na hora errada. Bom pra mim, era com esses que eu ganhava a vida.
Certo, certo. Estou mentindo pra vocês. Eu na verdade sou o melhor amigo desse cara. Bom, era né, afinal agora ele tá morto, não tem nem melhor nem pior amigo. Se bem que no final das contas, eu acabei sendo os dois. Eu não arrombei a porta, ele abriu pra mim. Ele falou pra eu ir pegar uma cerveja, já que a gente tinha combinado de encher a cara enquanto assistisse ao jogo. O problema é que ele era muito chato. Muita coisa mesmo, chega a ser inexplicável. Com futebol então, nem se fala. Aí o sacana ficou encarnando no meu time. Porra, sacanagem é plenamente compreensível. Aporrinhação não. Ele fez mais uma piadinha, e me deu no saco. Não pensei muito. Quebrei a minha garrafa, e enfiei no pescoço dele. Ótimo, silêncio. Peguei outra cerveja, e fui assistir ao jogo. O pior é que o time do filho da puta ainda ganhou. Sacana. Bom, menos mal que ele tá morto, senão aí sim, ele ia ficar insuportável. Gosto de pensar que fiz um bem pro mundo. Aí fiquei ali, olhando pros olhos dele, vidrados olhando pro nada. Pensei em jogar o tapete por cima, mas o tapete era caro. Depois do enterro ia tentar pegar pra mim, e manchado de sangue seria meio inútil.
Tudo bem, tudo bem, eu confesso. É mentira de novo. Eu sou um mentiroso compulsivo, invento histórias pra me divertir e tentar ganhar a simpatia dos outros. Não que dê muito certo, mas enfim. A verdade é que não era meu amigo, nem um desconhecido, não o matei com uma garrafa, e nem mesmo tinha jogo passando. Não que eu goste de futebol, de qualquer jeito. A casa era minha, e eu cheguei tarde como em qualquer outro dia. Meio puto, com fome, doido pra tomar um banho e descansar. Entrei em casa, fui deixando minhas coisas na mesinha perto da porta, e fui procurar minha esposa. A merda é que achei. Lá estava ela, jogada no chão da sala, com uma mancha escura em volta da cabeça, e um talho enorme do pescoço. E uma faca de cozinha em uma das mãos. Ainda bem que amolei as facas como ela pediu, ou então ainda ia ouvir: "Seu inútil, tentei me matar hoje de tarde e não consegui! Sabe por quê? Porque você não amolou as facas como eu pedi!". O pior nem foi isso, foi que ela ainda por cima conseguiu manchar a porra do tapete, cara! Devia ter algum bilhete suicida em algum lugar por ali, ou uma despedida escrita a batom no espelho do banheiro, mas não tava com saco praquilo naquela hora. Fui procurar alguma coisa pra comer, e achei uma panela de pressão no fogo. Filha da puta, ainda quis deixar a panela de pressão estourar, só pra eu ter que limpar. Como se já não bastasse todo aquele sangue na sala. Ela sempre reclamava que eu nunca ajudava. Bem, o feijão pegou um pouco no fundo, mas ainda estava comestível. Tinha arroz e carne da geladeira e, felizmente, ainda tinha umas três garrafas de uma daquelas cervejas importadas que eu adoro. Pulei pro sofá pra não pisar no sangue, e fui assistir um filme. Talvez resolvesse aquilo tudo na manhã seguinte.
Sabe, talvez casar tivesse sido uma boa. A menos que ela fosse uma filha da puta como essa mulher aí de cima. Se bem que provavelmente eu também não fosse um marido tão bom, já que ela se matou. Não parei pra pensar nisso. A questão é que eu sempre morei sozinho. Dei uma cagada de arranjar um emprego ótimo com apenas 20 anos, e pulei fora da casa dos meus pais. Vinte e cinco anos depois, algumas mulheres vieram e foram embora, e eu continuei aqui. De certo modo foi melhor assim, sou meio enjoado e gosto das coisas do meu jeito. Não tem muita gente que venha aqui em casa, até porque é meio longe e contramão do centro. E, ainda assim, cá estou eu, jogado na porra do chão e com um corte brutal na minha nuca. Pelo menos acho que estou, não sei. Não consigo ver nem ouvir nada, e a última coisa que senti foi um baque muito forte no pescoço, seguido do peso do meu corpo atingindo o chão. Tava com uma cerveja na mão sim, e lembro de ouvir a garrafa quebrar quando meu braço caiu por cima dela. Ótimo, pra completar devo estar com o braço todo cortado. Acho que o pior é não saber quem ou por que fez isso comigo, ou mesmo se eu ainda estou vivo ou não. Se eu não ouço nem vejo nada, provavelmente também não consigo falar nada, e estou simplesmente falando comigo mesmo dentro da minha própria cabeça. Meio solitário isso. Fico me perguntando se alguém vai me achar. Ou, se quando me acharem, ainda vou estar vivo. Ou se quem me achar não vai ficar morrendo de inveja, porque queria ter feito isso comigo mas nunca teve coragem. Não, já sei qual é o pior. O pior sou eu estar jogado no chão, provavelmente inconsciente, falando sozinho, ter quebrado a porra de uma garrafa de cerveja importada, não ter conseguido assistir a porcaria do jogo, e muito provavelmente estar sangrando em cima do maldito do tapete. Merda.
3 comentários:
Tratou a morte de forma tão banal..rs Mas é um bom conto!
;)
"Há, trouxa! Vai ter que voltar dos mortos pra lavar o tapete" huhuhu ^^
Genial.
Postar um comentário