terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Moleque - Parte 1

O moleque corria ladeira abaixo sem rumo, sem prumo, sem ideia do que fazer agora. Ele só corria, descalço e com a solina castigando sua cabeça raspada, tropeçava nos próprios pés percorrendo o calçamento mal feito do bairro antigo. Mas ele já deveria saber que não tinha como acabar bem. Tava na cara.


Ele parou por um segundo pra pegar ar, e olhar por cima do ombro. Péssima ideia. Seu perseguidor vinha logo atrás, brandindo um facão enferrujado nas mãos.


Duas semanas antes, ficou sabendo que ia ser pai. A história já era lugar-comum no bairro, onde a maioria das meninas já começava a parir aos 13, com os pais não muito mais velhos. Ele pelo menos tinha chegado aos 15 antes de dar tal sorte. Foi ter com a mãe, porque do pai já não sabia o destino havia bem uma dúzia de anos. Ouviu a ralhação que tantas vezes viu destinada a seus amigos do bairro, acompanhada da boa e velha sentença: “Pois agora vai trabalhar, que tem filho pra criar. E anda logo, que é pra pagar um médico decente pra cuidar de Joana enquanto tá com o filho no ventre.”


E assim foi feito. Correu atrás, mexeu daqui e de lá, e no final arranjou um bico de entregador de gelo. Foi de noite avisar Joana que tava empregado, e que ia ficar tudo bem. Ela continuava de garçonete no botequim no pé do bairro até quando desse, e ele ia fazendo a vida como fosse. Que ela não se preocupasse. No dia seguinte lá estava ele, pedalando aquela caçamba caindo aos pedaços pelos botecos da região levando gelo. Não passou do segundo. Chegou e viu meia dúzia de amigos dos tempos de campinho tomando umas cervejas na porta do bar. Não foi culpa dele, por assim dizer. Eles que o viram saindo. Chamaram pra um copo, ele negou.


Explicou a história, e disse que tava cheio de coisa pra fazer. Eles insistiram. Mas que diabos, um copo não ia fazer mal. Um copo não ia, mas uma garrafa e meia depois, ele largava os amigos discutindo bobagens na mesa e voltava pro triciclo só pra ver que os sacos de gelo tinham derretido. Tava na merda. Voltou correndo pro depósito, não a tempo de evitar um baita esporro, e o desconto de uma parte do comissionado do dia. Deveria tirar uns 20 reais no fim do expediente, mas por causa da brincadeira logo no começo do dia, mal arrancou uma nota de 10 da mão calejada do patrão.


O caminho pra casa foi triste. Ele não morava na parte alta do bairro, mas cansado do jeito que estava, até parecia a montanha mais alta do mundo. Sentou à mesa mudo do mesmo jeito que cruzara a porta de casa. Comeu o prato de feijão, arroz, ovo e farinha sem fazer um único som além da colher batendo no fundo do prato. Bateu na cama, e dormiu. O dia seguinte se repetiu praticamente da mesma maneira, com duas pequenas diferenças: a primeira, não repetiu a besteira de relaxar do trabalho por um momento sequer; a segunda, que não conseguiu dormir. Ele imaginava como seria difícil dar uma vida decente pra criança, pra mulher e pra mãe dele ganhando aquela miséria por dia. Passara a infância toda nessa situação, onde dificilmente o dinheiro ia pra outro lugar que não pra dentro do prato. Isso, claro, quando se tinha algum dinheiro. Ele não queria isso pra um filho. Imaginava que se conseguisse tirar pelo menos um pouco mais, uns 40 ou 50 reais por dia, já ia melhorar sua situação consideravelmente. Não ia lhe tirar da pobreza, não com aquele tanto de boca pra alimentar. Mas pelo menos teria um pouco de tranquilidade. Com o dinheiro, pelo menos. Porque ele sabia a única maneira que alguém como ele, praticamente sem estudo, poderia arranjar tal valor.


Mas ele tinha um plano.


Saiu de manhã cedo como se fosse pro trabalho. Se despediu da mãe, e ganhou a rua. Mas ele não desceu o bairro pra ir pro depósito. Ele subiu. E lá em cima, foi ter com o diabo.


Chamavam o cara de “Zé Bedegueba”. Deixaram ele escolher, deu nisso. Mas o nome mesmo era Cláudio. Claudinho, pros mais íntimos. Eram amigos de infância, então a conversa corria da maneira mais natural.


- O que é que tu quer?, dizia um garoto de uns 11 anos, no máximo, que guardava a passagem.

- Vim ter com Claudinho.


O garoto sorriu. Todos no bairro falavam no máximo “Zé”. Ele sabia que, pra ter coragem de pedir pra falar com o “Claudinho”, tinha que ser da família, muito amigo, ou muito estúpido. “Tem um cara aqui querendo papo com Claudinho”, ele dizia no rádio. “Manda subir”, foi a resposta curta e grossa. O moleque fez sinal com a cabeça, e ele entendeu.


Claudinho devia ter uns 19 ou 20 anos. Tinha dado sorte de sobreviver até agora, e acabou chegando no topo daquela cadeia alimentar. Controlava o tráfico na metade do bairro, e só tinha que dar satisfações ao chefe da facção, que gerenciava quase a cidade inteira.


- Porra, Pedro! - Claudinho dava um salto do sofá ainda com um copo de leite na mão e um pão na outra.

- Fala, Claudinho.

- Isso é jeito de chegar, do nada? Anda sumidão e me aparece assim de repente?


Claudinho deixava o pão e o copo em cima da mesa, e engolia rapidamente o pão molhado que tinha na boca.


- E desde quando eu tenho que avisar? Até parece! – respondia um Pedro quase sorridente.

- Tá certo... Mas me diz, o que te traz aqui? Que eu lembre, não te vejo há quase um ano.


Os dois se conheciam de infância. Claudinho ensinou de tudo a Pedro, de soltar pipa a levar uma mulher pra cama. Mas Claudinho decidiu por outro caminho, e largou Pedro sozinho nos campinhos de várzea pra trabalhar transportando pó.


- Quero vender.

Claudinho sorria.

- Vender? Se eu te deixar vender, tua mãe me mata.

- Ela não vai saber. Ela acha que to trabalhando num depósito lá no pé do bairro.

- Muito bem... só me explica porque.


Pedro contava a história.


Ainda enquanto ouvia Pedro falar, Claudinho se dirigia a um armário de ferro trancado à chave. Abriu, e de lá tirou duas dezenas de pacotinhos e enfiou numa mochila velha.


- Pedro, presta bastante atenção. Cada pacotinho desse vale 20 pratas. Vou te dar na confiança, mas é melhor você não vacilar no dia que tiver que me devolver essa porra. Hoje é quarta, vou te dar até terça. Final de semana o movimento é maior, você não deve ter problema pra se desfazer de tudo. Claro que isso não vai te render muito, mas se tudo der certo, semana que vem a gente aumenta tua participação.

- Pode deixar.

- Agora cai fora, que tenho coisa pra fazer. Anda, vai me deixar orgulhoso, vai.


Claudinho apenas observou enquanto Pedro desceu as escadas, pensando consigo mesmo que, uma hora ou outra, todo mundo cai naquela vida.

2 comentários:

Unknown disse...

Ó a merda se aproximando... Sinto o cheiro de merda! Os moleques dão "duro" nas minas, emplacam um boneco, mas não quererm dar "duro" na vida...rs.

No aguardo! ;)

FYC disse...

opaaaaaaaaaaa!
gostei!
quem foi que disse que posta umas duas vezes por ano mesmo, HEIN? hahahaha

beijos