quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Moleque - Final

Pedro já tinha tudo armado na cabeça. Ele não compartilhou tudo com Claudinho porque sabia que, se contasse, não ia conseguir o pó emprestado pra levantar a grana inicial. Ele ia vender só por algumas semanas, não muito mais que um mês, definitivamente menos que dois. Claudinho não ia deixar ele entrar na história pra depois pular fora. Podia dar merda, ele sabia, mas eles eram conhecidos de infância, depois ele via isso. Uma coisa de cada vez. A grana que juntasse, ia usar pra comprar algumas coisas pra vender no centro da cidade. Ia ser camelô, vender relógio, pilha, boneco falso ou refrigerante, mas pelo menos não ia correr o risco de ser morto a qualquer momento. Sem falar que não ia precisar ficar mais pedalando debaixo do sol o dia inteiro.



Desceu o bairro, e nas ladeiras ia encontrando com outros que, como ele agora, trabalhavam pro “Zé”. Aparentemente todos já sabiam da novidade, e lhe cumprimentavam quando passava. Um pouco antes de chegar no “ponto” onde deveria ficar, um dos moleques se juntou a ele. “O que foi?”, perguntou. “O Zé mandou te acompanhar. Só hoje, porque tu é novato.” Os dois passaram apenas algum tempo juntos. Em menos de 3 horas, 5 pacotinhos já tinham ido embora. Nunca tinha feito tanto dinheiro em tão pouco tempo. Resolveram ir embora, porque por duas vezes uma patrulha passou por eles e era questão de tempo até pararem ali. Antes de ir embora, o garoto que o acompanhava fez apenas um comentário, em tom de alerta: “Só lembra de uma coisa: esse dinheiro que tá aí não é teu, é do Zé. Espera pra receber a tua parte, depois gasta”.


Não que isso fosse ser um problema. A última coisa que queria era arrumar problemas, ainda mais que precisava estar na melhor situação possível com Claudinho, pra quando quisesse parar de vender. Quinta e sexta-feira passaram sem ele nem perceber. Tinha conseguido manter a mentira pra mãe, e enquanto ela acreditasse que estava entregando água, não teria muitos problemas em continuar vendendo pó. Sábado deixou avisado que ia jogar bola, e depois iria ver Joana, mas passou o dia no ponto. No domingo pela manhã, só faltavam 3 pacotinhos de cocaína pra vender. “É, tudo tá correndo bem”, pensou consigo mesmo. Ia ficar até o fim do dia, pra se desfazer logo do que restava da coca e ir pegar mais com Claudinho, mas viu uma patrulha passar algumas vezes pelas ruas ao lado, então achou melhor encerrar o expediente por ali.


- Pedro! – gritava uma voz pelo rádio.

- Eu.

- Pedro, aqui é o Zé. Corre em casa, que parece que tem alguma coisa errada com Joana.

- Valeu.


Subiu as ladeiras em tal velocidade que sequer via por onde passava, e ainda assim tinha a impressão de que lhe faltavam as pernas. Se tinha alguma coisa com Joana, provavelmente tinha alguma coisa com a criança. Nem de longe era uma cria planejada, mas não era por isso que não ia cuidar dela. Chegando em casa, viu a mãe cuidando da namorada, que descansava deitada na cama.


- O que houve?

- Ela sangrou. Ela tem que ir no hospital, não tem jeito. To só arrumando umas roupas pra levar. Me dá a sua mochila pra eu guardar as coisas.


Preocupado, entregou a bolsa sem pensar duas vezes.


- Pedro, QUE MERDA É ESSA? – dizia a mãe, segurando uma embalagem cheia de pó branco na mão. “Você por algum acaso é retardado?”, gritava. “Não sabe que essa porra só termina em morte? Ainda não viu amigo seu suficiente morrer por causa dessa porcaria não? Você tá comendo merda, por algum acaso?”, continuava.

- Mãe, não fode minha paciência. Depois a gente vê isso, agora a gente tem que se preocupar em levar a Joana na emergência.


Antes de sair, catou todo o dinheiro que tinha em casa, e seguiu com as duas pro hospital. Não que tenha adiantado muita coisa. Plena tarde de domingo, o hospital público mal tinha alguém na recepção. Deram entrada, mas quarenta minutos depois foram avisados que simplesmente não havia médico algum ali, e que o próximo só chegaria as três da manhã, e sequer era da especialidade necessária pra ajudá-los. Conseguiram pelo menos uma cadeira de rodas para deixar Joana descansando, e Pedro e sua mãe se afastaram pra conversar.


- Pedro, isso não vai dar certo. Eu já vi muito isso acontecer, se ela não receber cuidado logo, vai acabar perdendo a criança. Essa menina é igual você, completamente tapada, só foi perceber a gravidez com mais de três meses. Se ela parar a gravidez agora, vai ter que operar pra tirar.

- Não fala assim dela. Além do mais, mas tem muito o que a gente possa fazer...

Pedro parara de falar repentinamente. Tinha se lembrado do dinheiro que pegou antes de sair de casa. Tinha 340 reais na mão. Não era muito, mas tinha que ser o suficiente.

- Mãe, pega a Joana, eu vou chamar um táxi. Vamos no particular, é o jeito. O Santa Maria não é grande coisa, mas pelo menos vai ter médico. Sem falar que vai dar pra pagar.

- E posso saber de onde você vai tirar o dinheiro?

- Deixa que depois eu resolvo isso. Vai, anda logo.


Ir em outro hospital terminou por ser realmente a opção mais acertada. A criança que Joana carregava realmente corria riscos, mas com a medicação e repouso ficaria tudo bem. Sentado na beira da cama observando a mãe de eu filho dormir, outra preocupação tomava a cabeça de Pedro: onde diabos ia arranjar os 270 reais que gastou nessa correria toda. A merda tava feita, e se não tinha como levantar um valor desse antes, agora com certeza seria impossível. Depois de muito pensar, resolveu naquela noite mesmo ir explicar as coisas pra Claudinho. Juntou o que tinha restado, 70 reais mais três pacotinhos de coca, enfiou no bolso e subiu o bairro.


Pleno domingo, Claudinho terminava a noite em meio a uma roda de samba num boteco perto da própria casa, o que significava uma boa subida. Pedro enxergava as luzes amareladas iluminando as caras brilhantes de suor, em meio a bebidas e batuques. Chegou de fininho, e quando foi cumprimentar o “Zé”, disse que precisava conversar em particular. Desconfiado, o amigo deixou avisado que já voltava, e foram os dois pro fundo do boteco.


- Diz aí – interrogava Claudinho – qual foi?

- Aquela parada da Joana...

- Quê que tem? – perguntou uma Claudinho visivelmente irritado.

- Deu merda. – respondia Pedro, acuado.

- Que merda que deu? Anda, fala logo!

- A grana do pó. Tive que usar pra levar ela no médico. Só sobrou isso.

Pedro mostrava o dinheiro e os pacotinhos restantes.

- Cara, cê tá de sacanagem, num tá? Me diz que você tá de sacanagem!

- Não “véi”, é sério. Ela ia perder o guri, e...

- E, o quê? E o quê, ME DIZ? – o “Zé” mostrava agora que nem de longe era o amigo de longa data, e berrava enquanto estapeava fortemente a cara de Pedro. – Tu só pode tá de sacanagem comigo, cara! Aquela porra da tua namorada é uma baita duma puta, dá pra tudo quanto é moleque do bairro, e tu me faz uma merda dessa por um guri que se bobear nem é teu?

- Cara, não fala assim!

“Não fala assim?”, ironizava Claudinho antes de socar o nariz de Pedro, e deixá-lo sangrando.

- Mermão, eu te dei essa porra toda na confiança, e tu me dá um vacilo desse? Não sabe que eu também tenho compromisso com o cara que me fornece essa porcaria?


A gritaria era ouvida lá de fora, mas ninguém tinha coragem de interromper a cantoria. Os esporros do “Zé” tinham que ser respeitados, mas todos fingiam que nada acontecia. Prestar atenção no “Zé” era pedir pra ele prestar atenção em você, e não de um jeito bom.


- Só vou te dizer uma coisa: tu tem até amanhã, meio dia, pra estar com a grana inteira aqui na minha mão.

- Mas Claud...

- NÃO QUERO NEM SABER! Veio me pedir ajuda porque quis, otário. Agora te vira. Senão vou atrás de ti. Agora vaza!


Pedro saía com o nariz sangrando, e completamente desorientado. Sem saber o que fazer, correu na casa de cada conhecido seu, tentando juntar o que devia. O problema é que Claudinho já tinha mandado passar o recado, e quem ajudasse Pedro ia ter o mesmo destino dele. A maioria sequer abriu a porta. Outros falavam baixinho por detrás da porta, pedindo que fosse embora. Foi conseguir alguns trocados com alguns amigos no bairro vizinho, mas não deu nem pra começar. O jeito ia ser pular fora, e nunca mais dar as caras por ali até Claudinho ser morto, ou preso. De um jeito ou de outro, podia ser uma semana ou um ano.


Foi chegar em casa quase às sete da manhã, apenas pra ver a mãe desesperada, brigando e perguntando porque diabos ainda estava ali. Ele tentava explicar que tinha ido se despedir e que ainda tinha mais algumas horas antes de irem procurar por ele, então dava tempo de pelo menos juntar algumas coisas na mochila antes de sumir. Doce engano. O barulho de alguém socando a porta da frente era a dica que faltava pra Pedro entender que a chance que tinha tido de fugir foi depois de ter deixando Claudinho puto da vida no boteco, e não agora. A porta vinha abaixo, e vários moleques armados até os dentes só tiveram a chance de ver Pedro caindo pela janela.


- Ele tá na rua debaixo! – gritavam os garotos de metro e meio, que perseguiam Pedro armados como pra uma guerra.


Pedro corria desesperado. Sentiu vergonha de deixar a mãe sozinha com aqueles vagabundos na casa dela, mas se não tivesse feito isso, tava morto ali mesmo. Conseguia ouvir disparos que acertavam em cheio a parede exatamente no local onde ele estava um segundo atrás. Virou uma esquina, e percebeu logo que tinha cometido um grande erro. Descendo o cruzamento vinha o “Zé”, e ao vê-lo entendeu porque ninguém nunca disse nada daquele nome ridículo de cangaceiro: o “Bedegueba” trazia consigo uma peixeira enorme, enferrujada e suja com sangue que fazia questão de não limpar. “Caralho, o filho da puta ainda virou um sádico!” – pensava Pedro, enquanto virava pro lado oposto e continuava a correr.


Corria ladeira abaixo sem rumo, sem prumo, sem ideia do que fazer agora. Ele só corria, descalço e com a solina castigando sua cabeça raspada, tropeçava nos próprios pés percorrendo o calçamento mal feito do bairro antigo. Mas ele já deveria saber que não tinha como acabar bem. Tava na cara. Ele parou por um segundo pra pegar ar, e olhar por cima do ombro. Péssima ideia. Seu perseguidor vinha logo atrás, brandindo o facão enferrujado nas mãos.


Já tinha chegado no pé do bairro, e já não tinha mais descida pra ajudar na fuga. A esperança era que tivesse um ônibus ou qualquer coisa do tipo na avenida lá embaixo assim que chegasse, pelo menos tentaria despistar aquele tanto de moleque atrás dele. Os gritos do Zé eram de alguém que estava achando aquilo tudo extremamente divertido. Talvez ele já soubesse que isso ia acontecer, e resolveu ajudar Pedro só pra ter uma justificativa pra matar alguém mais tarde. As casas baixas deixavam passar a luz do sol, bem na direção da vista de todos eles, cegando Pedro no exato momento em que pisava em falso, e dava de cara com algo enorme e estranhamente macio.


Caído na rua e de costas pro sol, Pedro percebeu que tinha acertado em cheio a cabeça de um cavalo que no mínimo deveria estar perdido por ali. Começava a tentar se levantar pra continuar a fugir, quando notou que já era tarde demais: Claudinho ainda corria ao seu encontro, mas a única coisa que os separava era um cavalo extremamente agitado. Com os olhos vidrados no pescoço de Pedro e um facão sedento por sangue, não pensou na besteira que fez tentando empurrar o cavalo para tirá-lo da frente de Pedro.


Pedro mantinha os olhos fechados enquanto esperava o corte cego do facão em seu pescoço, e apenas ouviu o barulho do metal atingindo no chão, junto com o que parecia um saco de batatas tombando. Um silêncio absurdo tomou conta da situação, e Pedro espiava aos poucos o que tinha acontecido. Claudinho estava no chão, quase aos seus pés, mas agora com um buraco enorme na testa. Quando empurrou o cavalo, uma das patas foi parar direto em sua cabeça, transformando-o no mínimo em um vegetal.


Uma multidão se amontoava, tentando ver o acontecido.


O gerente do tráfico do bairro estava morto.


Era mais uma guerra esperando pra estourar, e ver quem assumiria seu lugar.


Nada incomum pra gente daquele bairro.


E de Pedro já não se via nem a sombra.

3 comentários:

Unknown disse...

Ahhhhhhhhhhhh Mulééééqui! rs
Acho que você está colocando o sangue que anda faltando no meu blog..r.s.

Mto bom!

Nathalia disse...

medo! hahaha

Analuísa Bessa disse...

Nossa, amei!!! Ta de parabens, chuchu. Tenho certeza de que já te falei isso antes, mas repito: vc escreve muito bem, manda muito mesmo! Mts beijos da sua fã ;)