domingo, 12 de outubro de 2008

Foco - Capítulo 4


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--> Se cada um tem o destino que merece, o que imaginar de nosso pequeno personagem? Temos diante de nós alguém fascinado por tempos que não viveu, músicas que não ouviu e pessoas que nunca conheceu. Aliás, ele nunca conhecera ninguém direito. Em sua mente, existiam apenas duas coisas: ele, e o que ele via a sua volta. Era de certa forma quase filosófico, a partir do momento em que se questionava se tudo que havia além de seu campo de visão realmente existia. Mas existe uma primeira vez pra tudo, e ele logo iria descobrir que existe muito mais no mundo do que supunha sua vã filosofia.
Um mundo fora da casca de noz, ou “quando o que você vê está mais perto do que parece”
Pela primeira vez em sua vida, ele tinha a companhia de alguém. Certo, tecnicamente não era “alguém”, mas sua relação com a antiga máquina fotográfica de seu avô era algo que ele, dentro de seu inexperiente conhecimento de causa, poderia até chamar de amizade. Afinal, ela estava sempre com ele e, o melhor de tudo, de certa forma ainda compartilhavam os prazeres da observação. Nada mal, para quem até pouco tempo não tinha nada além dele mesmo.
Mas a questão na qual entramos nesse momento não é exatamente a respeito de seu relacionamento com um objeto inanimado – mas sim a respeito do que aconteceu a ele por causa dessa que até poderia ser considerada uma amizade diferente, se não houvesse pelo mundo tanta gente que trata animais como grandes amigos. O grande problema da nossa situação é quem nem todo mundo compreende bem esses tais “relacionamentos alternativos”, e sempre tem aquele ser malévolo disposto a fazer com que todos saibam o quão ridículo ele considera tal situação.
HAHAHAHA, ou “olha que estranho o menino com a câmera na mão”
Como toda criança em tenra idade, havia a necessidade de que participasse de todo o ritual educacional que em teoria lhe proporcionaria fundações para todo o resto de sua vida. Pessoalmente, pouco lhe importava o tal “conteúdo” que lhe era forçosamente enfiado pelos ouvidos. Ele comparecia todos os dias àquele mesmo local, mas pelo prazer de ver gente. Claro, ele poderia muito bem ver gente pela televisão. Mas não era a mesma coisa. E também já havia percebido que “gente” acha muito estranho que alguém fique parado no meio da rua olhando pra elas. Então, como teoricamente ele “tinha” que estar ali, o melhor seria aproveitar. Pena que nem todos encaravam sua presença como algo positivo. Aliás, havia quem fizesse questão de demonstrar exatamente o contrário.
Era comum que recebesse encontrões ou empurrões pelos corredores. Ele não costumava responder, mas não por ser conivente com sua própria situação. A questão era que, mesmo que fizesse alguma coisa, de nada adiantaria. Só faria com que em vez de um ou dois, cerca de uma dúzia daqueles trogloditas de 15, 16 anos viesse atrás dele. Ele preferia então manter-se alheio a tais situações, mesmo que isso significasse ser tido como um “fracote” ou coisas do tipo. Ele não poderia ligar menos pra isso. Mas como já havia dito, sempre existe uma situação peculiar, um ponto de referência na vida das pessoas. Algo que significa que tudo a partir dali poderia ser classificado como “antes de” e “depois de”. E esse momento havia chegado.
“Vai lá, cara.” Ele ouvia a frase distante como um prenúncio do que iria acontecer. Afinal, ele passava por aquilo quase todos os dias.
-Anda! Qual é, ta com medo de irritar o cara? Ele nem se mexe mesmo... – dizia alguém.
-Não é isso. Só num to afim. Além disso, o cara nem fez nada. – completava outro.
-Rapaz, ele nasceu. É o suficiente. Vai lá e dá um sumiço naquela câmera dele, só pra bagunçar um pouco. Depois a gente devolve e diz que só queria dar uma olhada... – insistia o primeiro.
-Cara...
-Qual é, ta com medinho? Tá virando viado agora, ficando amiguinho do cara? Como é, vai ou não vai?
-Tá, to indo... Tá muito estressado você, ta ouvindo? Presta atenção você também...
As vozes riam da discussão, e incitavam um daqueles brutamontes a ir atrás do nosso pequeno personagem. Só que ele não era mais tão pequeno assim...
-E aí cara, beleza?
A voz era ignorada com um talento que só alguém muito experiente em fazer isso poderia ter.
-Como é, cê não ouviu não? Perguntei se ta tudo beleza.
Novamente, tudo que recebia era silêncio. Irritado, e já correndo o risco de parecer fraco em frente a seus “amigos”, ele não desiste.
-Porra meu, qual é? Tá surdo? – dizia, dando-lhe uma forte pancada nas costas – Anda, deixa eu dar uma olhada nessa câmera que você tem aí?
-Tira a mão. Que foi, ta gamando em mim? – respondia nosso jovem personagem às provocações.
As risadas geradas pela resposta eram agora ouvidas em alto e bom som.
-Rapaz, para de graça! Acabei de dizer pra você passar essa merda dessa câmera pra cá – dizia o outro, já tentando tirar o objeto das mãos dele.
-Já falei pra tirar a mão. Essa câmera era do meu avô, e é frágil. E vê se não enche. – respondia novamente, já puxando o equipamento para si.
Sabe, o maior problema dessa idade é que geralmente ninguém quer sair por baixo. Não se pode dizer nada fora de lugar, que o outro já interpreta como uma ofensa. Temos então um brutamontes pressionado pelos amigos a perturbar um jovem já cansado das tais “brincadeiras” daquele grupos de seres cujos cérebros aparentemente só conseguiam calcular o número de séries que deveriam repetir exaustivamente na academia, e mantê-los respirando. Na verdade não sei se chegaria a isso tudo. Alguns ali com toda certeza estavam perdendo a conta na academia...
A discussão se perpetuava, até que um deslize de ambos fez com que, em certo momento, tudo aparentasse um silêncio mórbido, permitindo somente que um leve som de vidro se estilhaçando fosse ouvido por todo o corredor.
-Caralho, se fudeu! – O grito quebrava o silêncio, junto com gargalhadas que pareciam não ter fim.
-É... É, se ferrou mesmo... – dizia o brutamontes, tentando esboçar um sorriso que nunca chegaria a ornamentar seu rosto.
A partir daí tudo acontecia muito rápido. É certo que, dentro de uma sociedade tida como “civilizada”, essa não seria a melhor atitude a se tomar. Mas quem enganou vocês dizendo que um corredor de uma escola é um lugar civilizado? Nosso jovem personagem havia chegado a seu ponto de ruptura, havia recebido a gota d’água, e não conseguiria agüentar aquela situação, mesmo que supostamente houvesse sido de algum modo um acidente. Ao mesmo tempo em que seu agressor se virava para encarar seus assim chamados “amigos”, um punho cerrado já cortava o ar em direção a seu maxilar. Essa cena em especial seria uma das mais fáceis de recordar durante todo o resto da vida de nosso personagem. Ele poderia, ao longo dos anos, relembrar o momento exato em que via os nós de seus dedos atingirem o rosto quadrado, levando consigo um par de dentes enquanto a face tomava a forma de seu punho. Ele não era muito bom naquilo, mas a raiva lhe permitia ainda desferir outro golpe em seu oponente antes que ele percebesse o que havia acontecido e começasse a revidar. Por sorte os dois logo foram separados, e ninguém teve maiores prejuízos do que alguns dias em casa em uns dois ou três hematomas.
Prosseguindo, então.
Acredito que não seja muito interessante pra nenhum de nós seguir detalhadamente o que aconteceu logo após o conflito, afinal, todos já passamos por isso um dia. Uma longa e tediosa conversa com a direção, repleta de “por que você fez isso?”, “você nunca entrou em brigas antes”, “seus pais vão ficar muito decepcionados com você”, e todo esse tipo de coisa. Enfim. Vamos pular cerca de meia hora, e encontrar nosso personagem sentado sobre uma das mesas do refeitório, aproveitando o tempo que lhe restava até que um de seus pais comparecesse à sala da direção e o levasse embora dali. O que acontece a seguir, isso sim, pode ser chamado de absolutamente inesperado.
-Ei, cara – dizia uma voz infelizmente conhecida.
-O que você quer aqui? Já não bastou aquela graça toda lá no corredor?
-Relaxa, cara. Vim te perguntar uma coisa.
-O que?
-Aceita um gelo aí? – dizia o jovem com a cara amassada – To com um pacote sobrando...
-Hmm... Valeu. Era só isso?
-Não. Na verdade queria me desculpar por aquilo tudo. É que sou novo aqui, e acho que meio que me deixei levar por aquele pessoal. E também pela tua câmera.
-Eu sei que você é novo. Entrou tem duas semanas, na primeira quarta-feira depois que voltamos de férias. Sentou na penúltima cadeira da fila da esquerda. Você só não sabia quem é que tava do teu lado...
-Caramba! Tu é fofoqueiro que só, hein?
-Sou só um pouco observador, na verdade.
-Mas então... a câmera foi pro brejo?
-Nem. O que quebrou foi só a lente de proteção, custa uns 30 paus, mas tem de monte lá em casa. Já até joguei fora.
-Que bom, cara.
Silêncio. Dois personagens aparentemente conflitantes, agora buscavam um entendimento mútuo. Um havia se encaixado no lugar errado, e o outro simplesmente não queria se encaixar.
-Qual teu nome? – dizia nosso personagem.
-Reginaldo.
-E eu que achava que era azarado. Tem outro nome não?
-Sempre tem, mas nenhum que vá fazer muito sentido. Inventa um apelido aí.
-Não sou bom de inventar as coisas. Segundo nome?
-Joaquim.
-Reginaldo Joaquim? Sua mãe não gostava de você não, é?
-Engraçadão você.
-Pois então vai ser Quim. Pelo menos é simples.
-É, nada mal. E você?
-Eu o que?
-Tem nome?
-Tenho.
-(...)
-Angelo. Pode me chamar de Angelo.
Os dois ficavam como que esperando o tempo passar. Era o final de um conflito, e o começo de um caminho completamente desconhecido.

2 comentários:

Vanessa Sagossi disse...

Ei..
Nossa, pensei que a continuação de foco só viria de presente de natal ou no ano novo... (hehe.. ^^)

Ahh, tadinho dele... Essas pessoas capitalistas, individualistas, que adoram os modelinhos criados pela sociedade. Enfim.

"Temos então um brutamontes pressionado pelos amigos a perturbar um jovem já cansado das tais “brincadeiras” daquele grupos de seres cujos cérebros aparentemente só conseguiam calcular o número de séries que deveriam repetir exaustivamente na academia, e mantê-los respirando." xD. Amei. Acho que isso é resultado daquele tempinho de academia.. rsrs...

"Sou só um pouco observador, na verdade." Até parece alguém que eu conheço. ^^

Bjs.

Luciano Freitas disse...

hehehe vanessa por aqui... rs.

cara, muito bacana esse capítulo. a melhor parte foi quando o "nosso personagem" acertou o soco!!! rs

yeah!