terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Minha doce bossa nova

Já há algum tempo que esta era a minha rotina. Mas não uma rotina ruim, porque eu adorava. Tinha se tornado mais um hábito. Um dia, por acaso, passei por ali procurando uma lanchonete, ou algo do tipo que não me recordo agora. Agora, assim que terminavam as aulas, eu ia direto para aquela praça a apenas duas ruas de casa. Deitava em um banco aos pés de uma enorme mangueira e, fazendo com minha mochila um rude travesseiro, ficava ali por horas, até ter que ir embora. Mas havia um motivo pra isso. A poucos metros dali, todos os dias, no mesmo horário, um senhor com uns poucos cabelos brancos e um enorme bigode colocava para tocar umas músicas incríveis, que só depois fui saber que eram todas os maiores clássicos da bossa nova. Eu sempre o via colocar o primeiro disco na vitrola, pra depois aconchegar-se numa enorme poltrona perto na janela. Ele lá, e eu aqui. Nunca nos falamos.

Eu tinha lá meus 14 ou 15 anos, e nunca tinha ouvido aquilo antes. Era completamente novo pra mim, mas aquele ritmozinho que eu achava engraçado a princípio já começava a fazer sentido nos meus ouvidos. Tanto que me apaixonei. Comprei alguns CD’s e um violão usado, mas nada substituía as horas passadas embaixo daquela mangueira ouvindo o som gostoso da agulha arranhando um disco antigo de vinil.

Isso foi logo no começo do ano. Vieram as férias de junho e julho, e fui com minha família para a casa de parentes no sul do país. Até tentei levar meus CD’s, mas minha mãe disse que aquilo era peso inútil na bagagem, e tirou tudo da minha mala. Eles ficaram lá, abandonados em cima da minha cama como amigos que se deixa pra trás. Não morri por causa disso, apesar de estar sempre morrendo de vontade de ouvir alguma coisa. Aproveitei as férias o quanto pude, e voltamos no dia anterior ao início da aulas.

Não dei a mínima pro que os professores falavam. Nem eu nem ninguém, mas tudo que eu queria era sair logo dali. O sinal do último horário foi como um grito de liberdade pra todos nós. Em meio a conversas, brincadeiras e bagunças, me desvencilhei daquela confusão e segui, sabendo que a música já teria começado, para meu banco de pedra e minha bossa nova.

Passava pela minha cabeça que talvez aquele senhor tivesse morrido, se mudado, ou os vizinhos tivessem reclamado e ele tivesse parado de colocar a música tão alta, mas eu realmente não esperava pelo que aconteceu. Caminhei distraído pela praça, e só percebi quando estava quase aos pés da árvore, perto demais pra disfarçar. Tinha alguém no meu banco. Não só alguém, mas uma menina. Uma menina linda. Uma pele branquíssima, contrastando com enormes mechas de cabelo negro como carvão que quase lhe passavam da cintura. Lábios finos e rosados, junto de olhos pequenos e sobrancelhas bem marcadas davam a ela uma expressão doce, mas firme. Seu corpo revelava que, pro meu engano, ela já começara a deixar de ser uma menina já há algum tempo. Seu pescoço fino terminava por mostrar um colo com algumas sardas, junto de pequenos mas proeminentes seios que formavam dois belos volumes sob a camiseta justa, a qual exibia ainda uma cinturinha muito bem marcada. Vestia ainda uma bermuda bem curtinha, deixando a mostra a pele alva de suas pernas bem formadas. Oras, eu era um garoto de 15 anos, pervertido como qualquer outro. Lógico que eu ia reparar nisso tudo.

“Oi?”, ela começou dizendo, provavelmente depois de me perceber ali com cara de quem tá na lua.

“Oi.”

Silêncio

- Tudo bem? - insistia ela.

“Tudo.”

Mais silêncio.

- Você tá no meu banco.

- Não vi seu nome.

- Não é meu, meu. Mas é meu.

A expressão de confusão no rosto dela foi o máximo.

- É que todo dia eu fico nesse banco.

- To aqui há duas semanas e nunca vi ninguém.

- Tava de férias.

- Ué, tavam te pagando pra tomar conta do banco? Quer dizer que estou perdendo dinheiro, então?

Agora era eu quem estava confuso.

- Vai, eu deixo você ficar ai no cantinho - dizia, enquanto recolhia um pouco as pernas.

Birrento, sentei no chão e coloquei a mochila no espaço que ela tinha me dado, usando como apoio. Ela riu. Com o passar da músicas, acabamos conversando. Ela também estava ali pela música, adorava bossa nova. Disse que morava por perto, mas nunca me disse exatamente onde. Vai ver tinha medo que eu fosse algum maníaco ou coisa assim. Ríamos sempre que falávamos disso. Era um ano mais velha que eu, e tinha se mudado durante as férias. Estudava em um outro colégio não muito longe dali, e isso era basicamente tudo que eu sabia dela. Ah, e se chamava Daniela. Dani, depois de alguns dias.

Pois aconteceu então de eu e Dani nos encontrarmos ali quase que diariamente. Ela era muito calma, o que mais tarde fui entender que era na verdade uma precoce maturidade. Enquanto eu não me continha em mim. Falava pelos cotovelos, e felizmente ela achava graça nas minhas infantilidades. Ela me falava de coisas mais sérias, me contava de filmes, música, teatro, enquanto eu a olhava com cara de quem havia descoberto a cura pra alguma doença gravíssima. Às vezes por causa do que ela me dizia, outras por ue ficava deslumbrado com seus pequenos detalhes, como o jeito que tirava a franja do rosto, como coçava a bochecha quando ficava em dúvida, como enrolava as pontinhas do cabelo entre os dedos quando estava envergonhada...

Ela me ensinou a dançar. Dançávamos pelo menos uma música, todas as tardes. Eu tentei ensiná-la a fazer um Lá no violão, mas ela me tirou o instrumento e começou a dedilhar a música que tocava pela janela. Ela me ensinou bossa nova, os artistas, as músicas, as histórias. Ela era mais que eu em tudo, e não entendia como ela tinha paciência de ficar ali comigo. Um dia, enquanto ouvíamos Dick Farney, demos nosso primeiro beijo. Não foi o primeiro pra mim, e muito menos pra ela, mas valeu como se fosse. A partir de então, nos tornamos inseparáveis enquanto aquelas poucas horas durassem. Engraçado que era apenas naqueles poucos momentos, mas eu não me importava. Ali eu tinha ela só pra mim. Acabamos dando um jeito dos dois caberem no banco. Muitas vezes eu deitava em seu colo, outras tantas o contrário. Em dias de chuva nos encolhíamos embaixo na mangueira, mas tantas foram as ocasiões em que mesmo sem chuva, ela se encolhia para que eu abraçasse por inteiro.

Fomos felizes, muito felizes. Mas nem tudo dura pra sempre. Aquela situação já corria havia bem uns 3 meses, até o dia em que ela não apareceu. Tudo bem, de vez em quando ela não aparecia mesmo. Eu imaginava que ela estivesse com pessoas da idade dela, ou tivesse saído pra algum lugar pra se divertir. Coisas que não dava pra fazer comigo. Mas já era o terceiro dia que ela não aparecia. Não sabia onde procurá-la, pois não tinha seu endereço. Também não perguntei seu telefone. Fiquei tão encantado com nosso mundinho, que não me importei muito com esses detalhes. Mais de uma semana havia se passado. Estranhei que alguns dias depois dela sumir, o velho senhor parou de colocar as músicas. Imaginei mil coisas, mas decidi entender que ela tinha se entediado com aquelas nossas bobagenszinhas. Fiquei triste, como toda criança quando perde seu primeiro grande amor. Deixei de ir até a praça, joguei meu violão pra cima do armário, enfiei meus CD’s num saco e joguei embaixo da cama. Se passaram três semanas até eu “superar” aquela história inteira. Em um dia nublado, saí da aula e resolvi dar uma passada no meu velho banco. Eu sentia falta dela, mas a saudade da bossa era maior ainda. Torcia que aquele velho senhor, meu companheiro solitário das tardes de música tivesse voltado a tocar os antigos discos.

Sentado no banco via os minutos passarem, e nada da música sair por aquela janela. Ela tinha ido embora, e levou minha bossa junto com ela. Me perdi em pensamentos e lembranças, hora de saudades, hora de raiva, e não vi o dia acabar. Em silêncio, acordei pra mim já com a noite alta, com uma pesada mão apertando meu ombro.

- Rapaz, – Dizia o velho senhor, quebrando um silêncio de meses entre nós dois – imagino que isto seja pra você.

Ele me entregou um pacotinho de folhas dobradas, e voltou pra dentro de casa. Reconheci o perfume da Dani nas folhas, e corri pra ler o que estava escrito. Quisera eu nunca ter recebido aquela carta.

Ali estava a história toda. Tudo que eu nunca soube sobre ela, caiu na minha cabeça como um bloco de concreto. Ela não se mudou de graça. Ele veio para a cidade porque aqui existia, na época, um dos melhores centros de nefrologia do país. Ela tinha uma doença gravíssima nos rins, e precisava de hemodiálise pelo menos 3 vezes por semana. Era nesses dias que nós não nos víamos durante a semana. Ela estava na fila para transplante, já que nenhum parente dela tinha se mostrado compatível. Aquele senhor era avô dela, por isso fora ele que me entregara a carta. Ela dizia que ficar ali fora era o máximo que ela podia fazer, além de ir à aula, e que estar comigo tinha sido a melhor coisa que poderia ter acontecido, pois eu lhe trazia um pouco à vida novamente, já que eu era o único que não sabia da sua situação, e por isso não tinha pudores com ela. No final da carta, ela contava que no dia seguinte iria finalmente ser submetida à cirurgia, mas que era uma operação muito delicada, e não sabia se iria resistir. Em todo caso, ela queria que eu soubesse que, ainda que eu fosse mais novo, na minha inocência eu havia feito dela a garota mais feliz desse mundo, e que mesmo em sua curta vida, sabia que eu havia sido o amor que ela queria pra vida inteira. Igualzinho às músicas que ouvíamos todos os dias.

A carta datava de um dia antes de quando eu percebi que ela tinha sumido. Isso só podia significar que nós nunca mais dividiríamos aquele banco de praça, enquanto nos perdíamos nas notas daquelas músicas incríveis.

Hoje, 20 anos depois, algumas das casas em volta da praça foram destruídas, e construíram um playground no lugar. De vez em quando eu volto lá com a minha Dani e, enquanto ela brinca com as outras crianças, me encolho naquele banco de pedra embaixo de uma velha mangueira enquanto ouço, entre memórias, a minha doce bossa nova.

5 comentários:

Unknown disse...

Bacana você ter voltado a escrever! Bacana mesmo! Só não larga de novo, né. rs

Unknown disse...

Eu gostei do conto, cara, se é o que quer saber rs. Muito bem narrado e tals, só não curti o fato do beijo ser ao som do Dick Farney. Acho que tinha coisas melhores para estarem ouvindo, se tratando de Bossa Nova..rs ;)

Kayo Medeiros disse...

Eu só tenho 3 discos de bossa nova no meu pc, e na hora tava tocando o Dick! Fazer oq?

FYC disse...

aeeeeeeeeeeeeeee!
gostei!
parabéns, vc escreve bem e eu nem imaginava! rs

beijooos

Rodrigo disse...

Bem nostálgico.